Entre o esquecer e o rememorar: a amnésia infantil na ótica psicanalítica

Os Nós da Mente

Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!

Entre o esquecer e o rememorar: a amnésia infantil na ótica psicanalítica
Entre o esquecer e o rememorar: a amnésia infantil na ótica psicanalítica
Divulgação

Por Vera Lúcia B. Baroni, psicanalista - @vera.bbaroni_psi

Não existe o esquecimento total: as pegadas impressas na alma são indestrutíveis.... - (Thomas De Quincey)

Você já se perguntou o porquê de não se lembrar dos primeiros anos da sua infância? Algumas pessoas afirmam lembrar-se de eventos ocorridos com elas quando ainda eram bebês, mas elas são uma exceção. Para a maioria das pessoas, grupo do qual faço parte, os primeiros anos da infância estão envoltos numa densa névoa de esquecimento e mesmo para aquelas pessoas que afirmam ter alguma lembrança de quando eram bebês, essa lembrança se apresenta de maneira fragmentada e fugaz. 

Quanto maior o período envolto em esquecimento, mais intrigados podemos ficar quanto ao que vivenciamos nele e quanto ao porquê de não nos lembrarmos. Um exemplo disso está na última sessão de terapia em grupo de que participo, cujo tema girou em torno desse esquecimento, bem como das poucas memórias que alguns ainda retinham desse período da vida. Fato é que, embora não tenhamos lembranças consistentes desse período, a qualidade das experiências que vivenciamos ficaram gravadas em nosso inconsciente. Se fomos bem acolhidos por nossa família, se recebemos atenção, afeto e cuidados suficientes ou, pelo contrário, se fomos mal acolhidos e não tivemos o afeto e cuidados que necessitávamos, trazemos no nosso psiquismo as marcas dessa vivência.

Como ainda não há um consenso, muitas são as teorias que tentam explicar as causas dessa amnésia infantil e entre elas está a que atribui o esquecimento à falta de desenvolvimento da linguagem. Para Lacan, é o desenvolvimento da linguagem que permite a formação da memória, uma vez que é através dela (linguagem) que nos tornamos capazes de simbolizar e representar o mundo à nossa volta. 

A fraqueza da memória confere fortaleza aos homens - (Bertold Brecht)

A frase de Brecht sugere que a aparente fragilidade da memória é, na verdade, uma fonte de força psicológica e ela também exemplifica uma outra teoria que atribui aos traumas e ao estresse as causas da amnésia infantil, pois eles afetariam a formação e a recuperação das memórias. Para Freud, a amnésia infantil se configura como uma defesa psíquica frente a eventos traumáticos, ou seja, é uma forma de autoproteção. Segundo ele, essas memórias iniciais se perdem completamente sob o véu da amnésia infantil, sendo substituídas por "lembranças encobridoras". Estas últimas, são lembranças de eventos aparentemente insignificantes como, por exemplo, certas brincadeiras infantis, mas que obscurecem eventos traumáticos ocorridos na mesma época e que são relegados ao esquecimento consciente, mas persistem no inconsciente, moldando o comportamento e as decisões do indivíduo. 

A teoria freudiana do "recordar, repetir e elaborar" oferece uma compreensão da dinâmica envolvendo a amnésia infantil. O ato inicial de "recordar" implica acessar as camadas mais profundas da memória. Porém, a presença das lembranças encobridoras se sobrepõe às experiências autênticas, dificultando a busca pela verdade vivenciada. Este processo demanda uma análise crítica das narrativas pessoais, visando distinguir entre a realidade e as distorções subjetivas. 

A segunda fase, "repetir", revela-se como a reprodução de padrões comportamentais relacionados aos traumas passados. Esses ciclos repetitivos emergem como um eco da história, reproduzindo uma tentativa de lidar com o trauma original e desafiando a compreensão do indivíduo sobre si mesmo. A análise psicanalítica enfatiza a necessidade de reconhecer e compreender tais padrões como parte integrante do processo terapêutico.

A fase final, "elaborar", representa a oportunidade de transcender a mera repetição automática. Aqui, o indivíduo é incentivado a confrontar conscientemente as sombras do passado, reinterpretando significados e integrando experiências de maneira construtiva. Este estágio visa à criação de uma narrativa coesa que conecta eventos passados à atual busca por identidade e sentido.

Neste intrincado jogo entre recordação, repetição e elaboração, a psicanálise destaca a riqueza da experiência humana. Cada lembrança, mesmo obscurecida por "lembranças encobridoras", oferece uma oportunidade para a compreensão profunda do eu. Cada repetição, uma porta aberta para reflexão, e cada elaboração, um ato consciente de transformação psicológica.