Qual o dilema de Hamlet?

O espelho narcísico fragmentado

Os Nós da Mente

Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!

Qual o dilema de Hamlet?
Qual o dilema de Hamlet?
Divulgação/istockphoto

Por Igor Alexandre Capelatto, psicanalista - linktr.ee/igorcapelatto

William Shakespeare dramaturgo, poeta e ator inglês que vivem de 1564 a 1616 em Stratford-upon-Avon, no Reino Unido, foi um gênio da percepção e compreensão humana. Em suas peças fez uma leitura fantástica dos comportamentos, sentimentos, da mente humana. Uma de suas peças mais populares é “Hamlet, o príncipe da Dinamarca”. Escrita entre 1599 e 1601, a peça não é sobre um período histórico, sobre o reino da Dinamarca ou sobre o príncipe. Com toda a obra do dramaturgo, Hamlet é sobre a essência humana. Nesta peça os temas traição, corrupção, vingança, incesto, moralidade, são aprofundados de forma intensa. Dentre os diálogos entre Hamlet, seu tio, seus amigos, seus súbitos, dentre outros personagens, sua mãe e sua noiva e seus solilóquios (monólogos), aparecem o Complexo de Édipo e o Narcisismo.

Narciso, figura mitológica da Grécia Antiga, é uma personagem que narra a história de um sujeito que admira a si mesmo mais do que qualquer outra pessoa. Além do ego exacerbado, Narciso é um sujeito que quer que tudo seja para ele. Só pensa em si. Shakespeare busco o mito, atualizou e o tornou atemporal. A partir de Hamlet podemos entender como funciona o mecanismo narcísico. Identifico em Hamlet um sujeito que pensa somente em si, nos seus desejos mais profundos e que são estritamente egóicos. Seu pai, o rei Hamlet, vem a falecer. Hamlet (que carrega o nome do pai) quer o trono da Dinamarca, por juízo. Até então, ele está sobre seu direto. Mas Hamlet não quer só o trono, ele quer assumir a figura do pai. Sua mãe, a rainha Gertrudes, ao se tornar viúva casa com o cunhado, Cláudio, tio de Hamlet. Hamlet vê-se nesta narrativa - Cláudio assassinou o pai de Hamlet, e casou-se com a mãe de Hamlet. O narcisismo primário ressurge e ele revive o seu édipo. 

Épido é uma figura também da mitologia grega. O mito narra a história de um filho que se apaixona pela própria mãe (numa atração ligada ao desenvolvimento sexual). Em Hamlet, Shakespeare traz o Épido para falar do narcisismo. Esse desejo pela mãe começa antes do período edipiano, no qual ganha nova conotação e direcionamento. Na primeira infância o bebê descobre que o seu choro não serve apenas para ser atendido nas suas necessidades fisiológicas, mas que ao chorar a mãe vem ara perto dele. Ele entende esse lugar de dominar o desejo de a ter. Freud intitulou esse comportamento de “Sua Majestade, o bebê”. Hamlet é a metáfora dessa própria personalidade. E Gertrudes, sua mãe, é o seu objeto primário que lhe assegura esse poder narcísico.

O que aprendemos com Hamlet? Ao trazer e atualizar Édipo e Narciso, Shakespeare nos mostra como esse comportamento do Ego funciona. Começa com um lugar do “posso tudo” e “tudo é meu”. Hamlet foi criado neste lugar. Sua mãe e o seu pai o paparicaram muito, lhe dando tudo que queria. Hamlet não aprendeu a lidar com frustrações, perdas. O narcisismo é um mecanismo que faz com que o sujeito perca a empatia pelos outros, que olhe a tudo como se fosse seu. 

Na peça, aparece um episódio importante. O pai deixa de ser o sujeito que lhe dá tudo e vira uma espécie de vilão, pois lhe rouba a mãe. O pai falece e o tio torna-se essa figura. Mas esse pai retorna, como um fantasma. Para o psicanalista Lacan, a figura metafórica fantasme é “uma estrutura que dá sustentação ao desejo através da construção de um roteiro que delimita a relação com o objeto, “[são as] produções do imaginário consideradas pelo seu valor simbólico” (Lacan, apud Abreu e D’agort). Nos seminários "O Simbólico, O Imaginário e o Real" (1953), “As formações do inconsciente" (1957-1958), "O desejo e sua interpretação" (1958-1959) e no artigo "Subversão do sujeito e dialética do desejo" (1960/1998), Lacan traz fantasme como fantasma e fantasia ao mesmo tempo. Podemos pensar na fantasia que assombra. Assombra porque ao mesmo tempo que manifesta o desejo, também vela. São os desejos proibidos. Seria o fantasma do pai de Hamlet o próprio pai (o rei) ou seria um simbolismo do desejo do próprio Hamlet, que irá realizar em nome do pai para não assumir como desejo próprio? Mas Hamlet tem dúvidas, tem bloqueios e incertezas de realizar tal desejo. 

Em “A interpretação dos sonhos” (1900), Freud destaca: "O que é, então, que impede Hamlet de cumprir a tarefa imposta pelo fantasma do pai?" (Freud 1900). O fantasma pediu que Hamlet vingue a sua morte. Mas a morte do pai também e um desejo do próprio Hamlet. Este é o Narciso que anda de mãos dadas com Édipo. 

Mas este Hamlet esta diante de um espelho fragmentado, ele olha para o espelho e vê Narciso. Mas eis que ao se ver entra em um conflito: “Ser ou não ser...”. A dúvida que lhe faz inseguro diante do pedido do fantasma. O que é essa dúvida senão o conflito interno do Ego: dar conta do próprio desejo. A culpa carregada da negação do pai.

A partir de Hamlet, podemos entender o que é o narcisismo e definir como: um lugar de posse de um objeto (ou de inúmeros objetos) em nome de satisfazer a si mesmo. É não ter sentimento pelos outros, ter sentimento direcionado somente a si mesmo. No mito de Narciso, Eco se apaixona por ele, mas ele no seu autocentrismo não dá ouvidos a ela, como se ela não existisse. Em Hamlet, Eco é Ofélia. Ofélia não é seu objeto de desejo por não ser dele a escolha. Essa personagem (e a escolha do mito foi de acerto intrínseco em Shakespeare) faz um arremate fundamental no conceito do narcisismo: o narcísico é quem tem a autoria do desejo e não o outro. Desta maneira iria até outra leitura deste fantasma onde talvez o conflito de Hamlet seja o fato de que o seu desejo tenha sido desejo do outro (do tio). 

Enfim, nesta peça, Shakespeare foi capaz de mostrar esta projeção do desejo narcísico. É um belo tratado que nos ensina a lidar com esse narcisismo primário, esse lugar de “Sua Majestade, o bebê”. Um tratado psicanalítico. Um exímio estudo de caso.