Quem são os fantasmas de Shakespeare?

Entre a fantasia e o real

Os Nós da Mente

Neste espaço você irá ter um conteúdo onde vamos discutir temas que têm tudo a ver com a sua angústia. O divã será o blog e o psicanalista é o grupo de autores que vão escrever os artigos que irão abordar filmes, livros, músicas e o cotidiano, mas tudo ligado à saúde mental. Você irá perceber que não está sozinho. Vamos dar as mãos para caminharmos na jornada do autoconhecimento. Isso porque esse é um blog de psicanálise para você!

O Fantasma de Banquo (Théodore Chassériau, 1855) - Musee des Beaux-Arts, Reims, France
O Fantasma de Banquo (Théodore Chassériau, 1855) - Musee des Beaux-Arts, Reims, France
Divulgação

Por Igor Alexandre Capelatto, psicanalista - linktr.ee/igorcapelatto

Entre 1603 e 1607, o dramaturgo William Shakespeare escreve Macbeth, uma peça que narra a história do General Macbeth que recebe uma profecia na qual ele se tornará Rei da Escócia. Porém, sua esposa, Lady Macbeth está convicta que, para tal fato consumar, ele precisa assassinar o Rei Duncan. Mas é uma passagem rápida pelo trono, uma vez que, conforme acrescenta a profecia, os filhos do parceiro de combate de Macbeth, Banquo assumiriam o trono destituindo-o do poder. 

Nesta peça Shakespeare revisita o conceito de Fantasme que apresentou outrora em Hamlet. A metáfora do termo se calca na ideia de que a figura assassinada reaparece como um reflexo tanto do desejo edipiano (vide o artigo “Por que Lacan interessou por Shakespeare?”) mas também como da culpa de tê-lo assassinado (ou desejado a morte). Em Hamlet, a culpa é de desejar a morte o pai. Em Macbeth, quem é assassinado é o amigo Banquo e seu filho Fleance. A ideia do fantasma é a ideia da fantasia, realização de desejo. Uma maneira imaginária de realizar aquilo que no real não se é permitido. Porém quando essa fantasia é atuada no real, eis que surge uma assombração que é nada mais do que uma representação da culpa.

Os fantasmas em Shakespeare representam a maneira como o dramaturgo encontrou poeticamente, em cena, uma forma de representar a culpa, ou o ‘peso da consciência’. Os fantasmas são reais? Quando se trata de projeções do desejo, estão no lugar da fantasia (Wunschphantasie – Fantasma do Desejo - como coloca Freud em 1917), quando se trata da culpa, estão no lugar do real (Realität (realidade psíquica) e Wirklichkeit (realidade do externo) ao mesmo tempo, atuando no que se designa como concreto). A importância do fantasma em Shakespeare vem de encontro com a leitura freudiana do fantasma em Hamlet, de que a culpa edipiana é um lugar de consciência do ato, não em si de desejar a morte do pai, mas de perceber que essa morte é por conta do desejo pela mãe. Em Macbeth, o desejo é o trono, o poder, não é um poder edipiano diretamente explícito de Macbeth, mas um atuar como objeto do desejo do Outro – no caso, o desejo de Lady Macbeth. A culpa não é somente de assassinar o amigo Banquo (e seu filho) ou o Rei Duncan, mas o de ter atuado em nome do outro.

Os fantasmas de Shakespeare nos ensinam sobre esse lugar do objeto de desejo e da culpa. É uma leitura que (em Macbeth, Hamlet, Júlio Cesar, Ricardo III e Cymbeline) deve ter uma atenção maior: não são apenas espectros assustadores, fantasmas vagando em castelos e campos como nos filmes de terror ou contos horripilantes. São metáforas que ilustram esse conflito entre fantasia e real, que ilustram de forma genial as relações entre Culpa e Medo. 

Hamlet abre com uma fala: “Quem está aí?”. É a frase que se repete em todas as peças shakespearianas. Esta indagação é uma fala geralmente ao fantasma (não ao personagem espectral, mas ao lugar da culpa). Esta fala não é de Hamlet, mas é como se pertencesse a esse peso de consciência de Hamlet (as personagens sentinelas, no caso Bernardo que faz a pergunta, podem ser lidas metáforas dos mecanismos de defesa e condenação internas do ego e superego). Segundo o pesquisador Ronaldo Marin, diretor do Instituto Shakespeare do Brasil: “quem é esse ser que pensa, que fala e que age envolto em uma pletora de sentimentos e emoções?” (2014). Podemos compreender que essa pergunta nos mostra que as peças shakespearianas são sobre a psiquê das personagens centrais. É como uma terapia na qual as análises psicanalíticas estariam sendo revelas ao público. Quem é essa voz que ecoa e julga dentro da mente de Hamlet, Macbeth, Ricardo III e demais personagens? – é o conflito direto entre o sujeito do desejo e o fantasma da culpa. “Quem está aí?” – responderia pois: Eu, o fantasma.

Em análise, o analisando está lá para enfrentar seus fantasmas, enfrentar a culpa e ressignificar suas fantasias. Freud observou que a realização da fantasia não é uma realização de prazer. Lacan revisita no seu Seminário 6 (1959) esse estudo freudiano, pontuando que o desejo edipiano quando confronta o real dá conta que se perdeu em um lugar de “ilusão”. Não há, portanto, a mãe como a esposa (essa metáfora em Édipo Rei) e sim a mãe desejada na libido, na sexualidade, mas que jamais será atingida (por isso recorre a Hamlet). Em Macbeth, essa mãe não está na figura progenitora, como em Hamlet, mas na figura da esposa que assume um papel, por senão, edipiano. 

Enfim, a lição que tiramos com os fantasmas nas peças shakespearianas é que se a culpa não é elaborada, se o édipo não é elaborado, ressignificado, o sujeito será assombrado por esse lugar de julgamento moral, psíquico e de destituição da tríade filho-mãe-pai. Estará em um barco navegando numa fantasia na qual não se permite chegar em terra firme, pois o real lhe é terrivelmente ameaçador.

*Esse artigo faz parte de uma série de artigos sobre Shakespeare que iniciaram com “Shakespeare, um psicanalista?”, “Quem te cortou a língua?”, “Por que Lacan interessou por Shakespeare?” e terá ainda mais alguns artigos: “Como Winnicott compreendeu Hamlet? - a dissociação, entre o ser e o não ser” e “Ricardo III é um ou dois? - a clivagem do eu e a esquizofrenia”.