
Quem cresceu nos anos 80 tem o clássico do Ultraje Rigor como referência para se permitir a se “morder de ciúme”. A música é sensacional, você começa a cantar e não para! O ritmo descontraído ajuda a tratar um assunto que é incômodo e dolorido em algo divertido.
Mas na verdade o ciúme não é levado tão a sério como deveria! Muitas vezes ele é incentivado como termômetro de quanto você gosta ou não de alguém, isso é correto? Realmente é necessário sentir ciúme de quem amamos? Ele fragiliza quem somos?
Infelizmente vemos casos de assassinatos e feminicídios assolarem nossa sociedade, tudo por uma questão de controle e posse. Será o ciúme o início de tudo? Conversei com a doutora em psicologia Renata Bueno sobre esse sentimento e como lidar com ele.
LUCAS SANSEVERINO: Renata, por que sentimos ciúme nos relacionamentos?
RENATA BUENO: O ciúme é uma emoção comum que geralmente surge do medo de perder alguém importante para nós. Ele pode ser influenciado pela forma como nos sentimos em relação a nós mesmos e ao nosso parceiro. Algumas pessoas têm mais dificuldade em confiar ou se sentir seguras em seus relacionamentos, especialmente se tiveram experiências de abandono ou rejeição no passado.
LUCAS SANSEVERINO: Como nossa infância pode influenciar o ciúme que sentimos?
RENATA BUENO: A infância molda a forma como nos relacionamos com os outros. Se tivemos cuidadores consistentes e carinhosos, é mais provável que desenvolvamos um apego seguro, o que reduz a chance de ciúmes excessivos. Mas, se enfrentamos negligência, rejeição ou instabilidade, podemos desenvolver um apego ansioso (com medo de perder o outro) ou evitativo (dificuldade em confiar e se abrir), o que pode intensificar os sentimentos de ciúme.
John Bowlby foi o fundador da teoria do apego e nos explica muito sobre esta origem: apego inseguro, seguro e evitativo
LUCAS SANSEVERINO: Quais são os tipos de apego e como eles se conectam com o ciúme?
RENATA BUENO: Existem quatro estilos principais de apego:
• Seguro: Confiança no parceiro e pouca tendência ao ciúme.
• Ansioso: Medo constante de ser rejeitado ou traído, resultando em ciúme mais intenso.
• Evitativo: Evita demonstrar emoções, mas pode sentir ciúme silencioso, disfarçando-o com indiferença.
• Desorganizado: Combina medo de abandono com dificuldade em confiar, causando reações confusas ou extremas de ciúme.
Esses estilos refletem a forma como aprendemos a nos conectar emocionalmente desde a infância.
LUCAS SANSEVERINO: Na sua experiência você diria que o ciúme reflete que algumas pessoas são mais inseguras ou controladoras nos relacionamentos?
RENATA BUENO: Na principal linha que eu atuo hoje, que é a Terapia do Esquema (terceira onda da TCC), entendemos que a insegurança e o controle podem vir de esquemas emocionais construídos ao longo da vida. Por exemplo, pessoas com o esquema de abandono acreditam que serão deixadas, enquanto aquelas com o esquema de desconfiança/abuso esperam ser traídas. Essas crenças fazem com que sintam a necessidade de controlar ou monitorar o parceiro para se protegerem.
LUCAS SANSEVERINO: Mas o que são estes “esquema” e como interfere na relação e no ciúme?
RENATA BUENO: Esquemas emocionais são padrões de pensamento e sentimento formados na infância que moldam como percebemos o mundo e os relacionamentos. Por exemplo: Alguém com o esquema de privação emocional pode sentir ciúme porque acredita que nunca terá suas necessidades atendidas. Já quem tem o esquema de inadequação pode acreditar que não é bom o suficiente e, por isso, teme que o parceiro procure outra pessoa.
LUCAS SANSEVERINO: Quais são os sinais de que o ciúme está ultrapassando os limites saudáveis?
RENATA BUENO: O ciúme se torna prejudicial quando afeta a confiança ou a liberdade do outro. Por exemplo, monitorar constantemente o parceiro; Proibir amizades ou controlar redes sociais. Ter brigas frequentes baseadas apenas em suspeitas. Esses comportamentos podem ser um sinal de esquemas ativados, como desconfiança/abuso ou abandono, e precisam de atenção.
LUCAS SANSEVERINO: O ciúme pode ser tratado?
RENATA BUENO: Sim, o ciúme pode ser tratado com psicoterapia. A Terapia do Esquema ajuda a identificar as crenças que levam ao ciúme e a substituí-las por pensamentos mais saudáveis. Também ensina habilidades para lidar com inseguranças, melhorar a comunicação e criar uma base emocional mais estável nos relacionamentos.
LUCAS SANSEVERINO: Como os casais podem trabalhar juntos para superar o ciúme?
RENATA BUENO: O principal é um diálogo aberto e honesto sobre os medos e necessidades de cada um. Trabalhar para reconstruir a confiança, mostrando consistência e transparência. Participar juntos de sessões de psicoterapia para entender como seus padrões emocionais e de apego interagem.
LUCAS SANSEVERINO: Sentir ciúme é sempre um problema?
RENATA BUENO: Nem sempre. O ciúme pode ser um sinal de que você valoriza a relação e quer protegê-la. Mas, quando ele gera comportamentos destrutivos, como controle ou brigas frequentes, é um indicativo de que algo precisa ser trabalhado – seja na relação, seja em crenças pessoais.