
No coração do Vale do Paraíba, um movimento silencioso, porém poderoso, está transformando a forma de produzir e certificar alimentos orgânicos na nossa região. Agricultores familiares da região se uniram para criar a Rede APOENA, a primeira SPG (Sistema Participativo de Garantia) do Vale do Paraíba e região, um modelo de certificação orgânica que vai além do selo tradicional e fortalece a agricultura agroecológica e regenerativa.
Se a sustentabilidade busca sustentar o impacto e garantir recursos para as próximas geração, a regeneração dá um passo além: promove impactos positivos no meio ambiente e nas relações sociais, objetivando deixar um mundo ainda melhor para as futuras gerações. A APOENA nasceu desse propósito, da necessidade de construir um modelo de produção de alimentos que não apenas respeite a terra, mas que também a recupere e fortaleça os laços entre agricultores e consumidores.
"A ideia da APOENA surgiu desse encontro entre agricultores familiares experientes e novos produtores rurais que estavam chegando ao campo, trazendo novas possibilidades e aprendendo com quem já estava na lida há décadas", conta Yuri Almeida, agricultor e um dos idealizadores da rede. "Vimos que a certificação orgânica era essencial para acessar melhores mercados, mas queríamos um caminho que fosse coletivo e fortalecesse a agroecologia no Vale do Paraíba".
Um modelo de certificação que nasce da base
A certificação orgânica tradicional, baseada em auditorias externas e custosas, muitas vezes se torna um desafio para pequenos produtores. Foi justamente por isso que o SPG se consolidou como uma alternativa mais democrática. Esse modelo é baseado na corresponsabilidade, onde os próprios agricultores se fiscalizam mutuamente, garantindo que todos sigam os critérios rigorosos da legislação brasileira de orgânicos.
"A certificação participativa é um sistema autogerido pelos próprios agricultores e pela sociedade civil", explica Yuri. "Em vez de fiscais externos, somos nós mesmos que visitamos uns aos outros, verificamos o cumprimento das normas e, mais do que isso, trocamos conhecimento e nos fortalecemos enquanto rede".
A cada semestre, os produtores da APOENA realizam visitas técnicas entre si. No primeiro, ocorrem auditorias internas dentro dos grupos locais. No segundo, as visitas cruzadas garantem ainda mais confiabilidade ao selo. "Se um agricultor de São José dos Campos é certificado por um de Jacareí, e este, por um de Pindamonhangaba, criamos uma rede de confiança que impede qualquer fraude. A integridade do selo orgânico é garantida por essa corresponsabilidade", diz Yuri.
A agroecologia como caminho para a regeneração
Diferente da agricultura orgânica, que foca na eliminação de insumos químicos nocivos, a agroecologia é um conceito mais profundo. Ela não trata apenas do "o que se planta", mas sim "como se planta" e "como as pessoas vivem no campo".
"A agroecologia não tem a ver apenas com a produção de alimentos sem veneno. Ela fala de um modo de vida, de relações justas entre agricultores, consumidores e o meio ambiente", reflete Yuri. "Nosso objetivo não é apenas reduzir impactos, mas criar sistemas agrícolas que deixem o solo mais rico, as florestas mais vivas e os trabalhadores mais dignificados".
E a estratégia vem dando certo. A rede APOENA já reúne cerca de 20 produtores e tem como meta alcançar 30 nos próximos anos. Mais do que um número, esse crescimento representa a viabilidade da agroecologia como modelo produtivo, algo essencial em tempos de crise ambiental e insegurança alimentar.
"O sistema participativo pode ser a diferença entre viabilizar ou inviabilizar uma produção agroecológica", explica Yuri. "Sem essa certificação, muitos pequenos agricultores simplesmente não teriam condições de se manter".
Da certificação até o acesso ao mercado: o impacto para agricultores e consumidores
A certificação orgânica por SPG não é apenas um selo colado em um produto. Ela garante acesso a mercados diferenciados, abre portas para feiras agroecológicas e programas institucionais de alimentação, como merendas escolares. Mas os benefícios vão além da comercialização.
"Quando o consumidor escolhe um alimento certificado por um SPG, ele não está apenas garantindo um produto livre de agrotóxicos. Ele está apoiando a agricultura familiar, fortalecendo o empreendedorismo rural e ajudando a equilibrar a relação entre cidade e campo", explica Yuri.
Essa aproximação entre quem planta e quem consome é um dos pilares da APOENA. Em alguns casos, os consumidores fazem parte da própria rede, acompanhando o processo produtivo, visitando as propriedades e estabelecendo uma relação de confiança direta com os agricultores. "Isso gera uma transparência e uma segurança alimentar que o sistema tradicional não consegue proporcionar", complementa Yuri.
O Vale do Paraíba: um território fértil para a regeneração
Com suas encostas, morros e poucas áreas planas, o Vale do Paraíba pode não ser ideal para o agronegócio de larga escala, mas se mostra perfeito para a agroecologia e a regeneração. A produção agroflorestal, os sistemas agroecológicos e a certificação participativa são caminhos que fazem sentido para a geografia e a cultura local.
"Quando fortalecemos a agricultura familiar agroecológica, garantimos alimentos saudáveis, promovemos desenvolvimento econômico e social e ainda trabalhamos na recuperação ambiental das áreas cultivadas", afirma Yuri.
O que os agricultores da APOENA mostram ao Brasil é que regeneração não é apenas restaurar o que foi degradado, mas criar algo ainda melhor do que existia antes. E essa transformação já está em curso, no ritmo da terra, no compasso do trabalho coletivo e no compromisso de cada agricultor que escolheu fazer parte desse movimento.
E nós, como consumidores, podemos apoiar este movimento e participar de grupos que fazem do alimento um ato de respeito, amor e regeneração à natureza. Afinal, a saúde integral começa pelo prato, e quem planta também faz parte deste processo. Devemos pensar além do alimento como apenas um produto no supermercado.
ENTREVISTA NA ÍNTEGRA PARA A COLUNA "SUSTENTABILIDADE E REGENERAÇÃO" – BAND VALE TV
INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO
1. Conte um pouco sobre sua trajetória na agricultura e o que te levou a idealizar a Rede APOENA.
Minha trajetória começou na área da sociologia. Trabalhei no terceiro setor com o conceito da permacultura, que envolve a agroecologia e a agricultura orgânica, dentro do guarda-chuva da sustentabilidade. Esse trabalho já era desenvolvido na região de São José dos Campos desde 2010, ou seja, há cerca de 15 anos.
Ao longo desse período, envolvi-me com diversas áreas, como bioconstrução e construções ecológicas, o que me aproximou dos agricultores familiares da região. Trabalhei em parceria com o poder público em diversos projetos, o que me proporcionou uma imersão ainda maior nesse universo.
Com o tempo, fui me interessando mais pela agricultura, inspirado pelo trabalho dos agricultores familiares. Então, a partir de 2017, decidi migrar para a agroecologia, tornando-a minha principal fonte de renda. Passei a atuar de forma integral na produção de alimentos e na criação de redes que promovem a agroecologia no Vale do Paraíba.
A interação entre agricultores experientes e novos produtores trouxe uma diversidade de possibilidades para a agroecologia na região. A ideia da APOENA surgiu dessa dinâmica, unindo a experiência dos agricultores familiares ao entusiasmo dos novos produtores rurais. É importante ressaltar que a APOENA é um projeto coletivo, idealizado e estruturado por várias pessoas que compartilham o mesmo propósito.
2. O que significa um Sistema Participativo de Garantia (SPG) e por que ele é uma alternativa importante dentro da certificação de alimentos orgânicos no Brasil?
A legislação orgânica brasileira é reconhecida mundialmente por sua qualidade e inovação. Um dos seus diferenciais é o Sistema Participativo de Garantia (SPG), que surgiu da base dos agricultores no sul do país e foi posteriormente incorporado à legislação como uma alternativa de certificação.
Diferente da certificação tradicional, que depende de fiscais externos, o SPG é um sistema autogerido pelos próprios agricultores e pela sociedade civil. Em vez de auditorias formais, ocorre um processo de fiscalização entre os próprios produtores. Um agricultor visita a produção de outro e segue um protocolo validado pelo Ministério da Agricultura. Se um produtor fizer vista grossa para alguma irregularidade, ele também será responsabilizado, podendo perder sua certificação.
Esse modelo fortalece a confiança, promove encontros e possibilita ações coletivas, criando uma rede sólida de corresponsabilidade entre os envolvidos. Além de ser seguro, o sistema favorece a cooperação e o fortalecimento da agricultura orgânica.
3. Como surgiu a ideia de criar a primeira SPG do Vale do Paraíba? Quais foram os desafios iniciais e como vocês superaram esses obstáculos?
A ideia da SPG surgiu do encontro entre pessoas com diferentes perfis, todas engajadas na agroecologia. Precisávamos de uma solução para acessar mercados melhores, e o selo orgânico se mostrou o caminho ideal. No entanto, queríamos um modelo coletivo, e o sistema participativo se encaixou perfeitamente nessa necessidade.
O principal desafio foi organizar esse coletivo, algo que, apesar de já termos experiência, sempre demanda um esforço extra. Além disso, a parte burocrática foi um grande obstáculo. O processo de cadastramento de um SPG é rigoroso, exigindo uma documentação detalhada e profissionalização. O Ministério da Agricultura realiza um trabalho sério e criterioso na concessão dessas certificações.
A CERTIFICAÇÃO COOPERATIVA E A REDE APOENA
4. Qual é a principal diferença entre a certificação participativa e a certificação por auditoria tradicional?
A certificação participativa é baseada na corresponsabilidade em rede. Os agricultores se encontram regularmente, realizam auditorias entre si e trocam informações, o que fortalece a cooperação.
Já a certificação por auditoria tradicional é feita por uma empresa credenciada pelo Ministério da Agricultura. O produtor paga para ser fiscalizado, sem o benefício das trocas entre agricultores. Esse modelo, além de ser mais caro, não promove o senso de comunidade e cooperação como o SPG.
5. Como funciona, na prática, o processo de certificação dos produtores dentro da APOENA?
A APOENA é organizada em grupos regionais, divididos por proximidade geográfica, como São José dos Campos, Monteiro Lobato, Jacareí, Pindamonhangaba e Taubaté.
Cada grupo se reúne semestralmente para realizar visitas mútuas e mutirões, que funcionam como auditorias internas. No segundo semestre, realizamos visitas cruzadas, em que um grupo visita outro, garantindo uma avaliação externa dentro da própria rede.
A confiabilidade é garantida pela corresponsabilidade dos produtores. Como cada um responde pelo outro, qualquer tentativa de fraude compromete não apenas um agricultor, mas toda a rede. Isso torna o sistema extremamente seguro.
6. Quantos agricultores já estão envolvidos na rede e qual a projeção para os próximos anos?
Atualmente, a APOENA conta com cerca de 20 produtores. O objetivo é alcançar pelo menos 30 agricultores, o que permitiria uma gestão financeira e coletiva mais equilibrada. A expansão acontece gradualmente, pois o modelo é novo e enfrenta resistência inicial. No entanto, à medida que mais produtores compreendem os benefícios, a rede tende a crescer.
7. Quais critérios e princípios norteiam a certificação da APOENA? Como vocês garantem a qualidade dos alimentos e a integridade do selo orgânico?
Seguimos rigorosamente a legislação nacional de orgânicos, sendo auditados pelo Ministério da Agricultura. A qualidade e a integridade do selo são garantidas pela estrutura de corresponsabilidade do SPG, que dificulta fraudes e torna o controle mais eficiente.
No SPG, os próprios agricultores são responsáveis pela fiscalização, criando um sistema de vigilância coletiva muito mais robusto do que auditorias isoladas feitas por fiscais externos.
O IMPACTO PARA OS AGRICULTORES E CONSUMIDORES
8. Como a certificação participativa fortalece os pequenos produtores e promove a agricultura familiar na região?
O primeiro benefício é o custo reduzido. A certificação participativa é mais acessível para pequenos produtores. Além disso, o modelo promove cooperação e troca de conhecimento, fundamentais para o crescimento sustentável da agricultura familiar.
A certificação orgânica também facilita o acesso a mercados diferenciados, tornando viáveis pequenas produções agroecológicas que, sem um selo, teriam dificuldades para competir.
9. O que muda para o consumidor ao comprar um alimento certificado por um SPG? Como isso pode fortalecer a relação entre quem produz e quem consome?
Ao optar por um alimento certificado por um SPG, o consumidor fortalece diretamente a agricultura familiar e o empreendedorismo rural. Isso contribui para reduzir problemas sociais, como o desemprego e o êxodo rural.
Além disso, o SPG aproxima o consumidor do produtor, permitindo maior transparência e interação. Esse contato direto aumenta a confiabilidade e possibilita um consumo mais consciente e ético.
10. Você poderia compartilhar algum caso inspirador de agricultores que transformaram suas vidas ao aderirem ao modelo da APOENA?
O sistema participativo tem sido um fator decisivo para muitos agricultores familiares continuarem produzindo de forma agroecológica. Para alguns, a certificação SPG fez a diferença entre viabilizar ou inviabilizar sua produção.
Ao participar da rede, os produtores acessam novos mercados e ganham segurança financeira. Além disso, o modelo incentiva a troca de conhecimento e o aprendizado contínuo, permitindo que pequenos agricultores se fortaleçam e cresçam juntos. Muitos deles teriam abandonado a produção se não fosse essa rede de apoio.
AGROECOLOGIA E SUSTENTABILIDADE
11. A APOENA vai além da certificação orgânica e abraça práticas agroecológicas. Qual a diferença entre agricultura orgânica e agroecologia?
A principal diferença está na profundidade do conceito. A agricultura orgânica se baseia em técnicas produtivas, eliminando produtos químicos nocivos, como transgênicos e agrotóxicos.
Já a agroecologia é um modelo mais amplo, que inclui dimensões sociais, econômicas e políticas. Vai além da técnica produtiva, propondo um modo de vida sustentável e uma relação equilibrada entre seres humanos e natureza.
A agroecologia não foca apenas no que se planta, mas também em como as pessoas vivem no campo. A remuneração justa dos agricultores, a preservação dos recursos naturais e o fortalecimento da economia local são aspectos fundamentais desse modelo.
12. Como a agroecologia pode ser uma solução para a crise ambiental e alimentar que vivemos hoje?
A agroecologia não busca apenas reduzir impactos ambientais, mas sim gerar impactos positivos. Uma terra cultivada de forma agroecológica se torna um ambiente mais equilibrado do que era antes da presença humana.
Do ponto de vista alimentar, a agroecologia descentraliza a produção, fortalecendo pequenos produtores e garantindo alimentos mais saudáveis para a população. Além disso, contribui para a desconcentração urbana, melhorando a distribuição de renda e diminuindo desigualdades.
A longo prazo, investir em agroecologia significa criar uma sociedade mais justa, com maior segurança alimentar e menor degradação ambiental.
13. Você acredita que os modelos de CSA (Comunidade que Sustenta a Agricultura) podem ser um caminho viável para fortalecer a agroecologia e a produção local?
Sim. O modelo de CSA (Comunidade que Sustenta a Agricultura) permite que consumidores financiem diretamente a produção agrícola, garantindo segurança financeira para os agricultores e proximidade com os alimentos que consomem.
Nesse sistema, o produtor recebe um pagamento fixo para fornecer alimentos regularmente às famílias participantes. Isso reduz a incerteza e permite que ele se concentre na produção, sem a pressão de vender individualmente cada item colhido.
No entanto, para que o CSA se popularize, é necessário um esforço para mudar a mentalidade do consumidor. As pessoas precisam compreender que, ao apoiar diretamente os agricultores, compartilham tanto os riscos quanto os benefícios da produção.
Embora o modelo ainda esteja crescendo no Brasil, é uma ferramenta poderosa para fortalecer a agroecologia e criar relações mais diretas entre quem produz e quem consome.
REFLEXÕES SOBRE O FUTURO
14. Quais são os próximos passos da APOENA? Há planos de expansão para outras regiões?
Nosso principal objetivo no momento é garantir a sustentabilidade financeira da rede. Para isso, buscamos expandir o número de produtores e fortalecer a captação de recursos por meio de parcerias estratégicas.
Outro foco é aprofundar as relações institucionais com outras entidades do Vale do Paraíba que trabalham com agroecologia e sustentabilidade.
Em relação à expansão para outras regiões, o objetivo não é transformar a APOENA em uma rede nacional. O sistema participativo funciona melhor de forma localizada, com redes independentes em cada território. No futuro, podemos apoiar a criação de novas SPGs em outras regiões, mas sem centralizar tudo em uma única organização.
15. Como políticas públicas podem incentivar modelos como a certificação participativa e a agroecologia no Brasil?
A agroecologia é um projeto de sociedade e precisa ser fortalecida por políticas públicas. Hoje, o financiamento para iniciativas agroecológicas é muito limitado, o que faz com que a maioria dos projetos dependa apenas da força de vontade dos agricultores.
Enquanto o agronegócio recebe incentivos governamentais e subsídios, a agroecologia enfrenta muitas barreiras. Para mudar esse cenário, seria necessário investir em:
- Assistência técnica para pequenos agricultores
- Programas de incentivo à certificação participativa
- Criação de cooperativas e redes de comercialização
- Desenvolvimento de maquinários adaptados à agricultura familiar
Com políticas públicas bem estruturadas, a agroecologia poderia se tornar uma alternativa economicamente viável e amplamente adotada.
16. Para quem está interessado em apoiar essa iniciativa ou até mesmo iniciar um modelo similar em sua comunidade, por onde começar?
Se você está no Vale do Paraíba, pode apoiar a APOENA comprando alimentos certificados pela rede, participando de uma CSA ou procurando conhecer os produtores locais. Hoje, temos sete comunidades que sustentam a agricultura dentro da APOENA.
Se a intenção é criar uma nova rede, o primeiro passo é entrar em contato com SPGs já existentes para entender o funcionamento e os desafios.
O processo burocrático pode ser demorado, pois o Ministério da Agricultura faz uma análise rigorosa antes de conceder a certificação. Por isso, é essencial começar cedo e estruturar bem a documentação.
A longo prazo, fortalecer a certificação participativa é um caminho sólido para expandir a agroecologia no Brasil e garantir alimentos saudáveis e acessíveis para todos.