Coach faz outdoor e diz que famílias pobres podem quebrar o sistema e enriquecer

No outdoor, ele dá a entender que é possível enriquecer de forma mais fácil, mesmo se você for pobre

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Coach faz outdoor e diz que famílias pobres podem quebrar o sistema e enriquecer
Wendell Carvalho
Divulgação

Quantas mentiras se escondem por trás de uma barba? 

Antes de explicar o meu ponto, eu queria compartilhar uma lembrança que tenho com vocês. Lá em 2005, quando ainda vivíamos na Internet discada, os nossos pais tinham uma grande preocupação com o conteúdo que a gente consumia.

Eles fiscalizavam o nosso Orkut, as conversas do MSN e páginas de busca eram até restringidas pela ameaça de levar belos tapas.

Na verdade, eles não tinham medo do que iríamos ver ali, mas sim do que iríamos absorver daquilo ali.

O medo não era de cair em golpes, mas sim de acreditar em mentiras.

"Está cheio de gente por aí tentando te enganar na internet. Não acredite em qualquer coisa que você vê por aí. Eles querem só roubar o seu dinheiro" – diziam meus pais naquele tempo.

Claro, o medo até então era ter o cartão clonado, ou comprar alguma coisa e simplesmente não entregarem.

Hoje, creio, o problema é muito pior.

Coragem. Proatividade. Iniciativa.

Tudo isso faz parte do "pack do sucesso" da internet. Claro, tudo embalado num "segredo nunca antes revelado e que nenhum desses gurus te ensinam" – atentai bem ao fato que todo guru diz que não é um guru.

Mas deixe-me dar um exemplo:

Eu e minha mãe temos o costume de nos encontrarmos às sextas-feiras, para tomar um café e conversarmos um pouco sobre a vida. Esses dias, enquanto falávamos, ela me disse que estava querendo "começar um novo empreendimento": vender trufa online

Estranhei. Mas, até aí, nada demais. Se era algo que ela gostaria de fazer, quem sou eu para dizer que não?

Porém, quis investigar essa ideia um pouco mais.

"E por que resolveu começar a fazer isso agora, mãe?" – perguntei.

"Foi um curso que comprei na internet. Se eu quiser ser milionária, preciso começar de algum lugar…com a internet, acho que consigo."

Parei por alguns segundos para processar aquela informação.

Minha mãe. Vendedora de trufa. MILIONÁRIA.

E que fique claro: meu problema não é com a venda de trufas – que é um trabalho digno como qualquer outro.

Meu ponto aqui é outro:

A questão é que é muito fácil você vender a ilusão para as pessoas que elas poderão ficar milionárias fazendo absolutamente qualquer coisa.

É óbvio que, dada a quantidade de pessoas que estão tentando ganhar a vida usando a internet, terão aquelas que enriquecerão vendendo trufa, bolo de pote, ovo, curso online…

Nada que a estatística pura e simples não explique.

Agora, você usar isso como argumento incontestável de que "basta você querer e seguir o MÉTODO CERTO que ninguém mais ensina", convenhamos que há um salto no mínimo…suspeito.

Se até poucos anos atrás essa era a geração que nos ensinava a estudar para passar numa boa faculdade, depois fazer uma pós, arranjar um emprego, fazer MBA…

Hoje, é a mesmíssima geração que acredita que não ser milionário é símbolo de fracasso na vida.

Claro que, para alcançar o tão famoso sucesso defendido pelos gurus da internet, você precisa passar o cartão antes.

Mas você já viu o padrão por aí:

É o sujeito que treina jiu-jitsu, faz academia, se alimenta impecavelmente bem, viaja dois meses por ano e posta foto passeando de camelo em Dubai, anda de carrão esportivo…

Ele vai pro jiu-jitsu descalço, porque aí parece que é humilde (o tal do outfit milionário: vejam como eu não dou a mínima para dinheiro).

Quando chega em casa, coloca aquela camisa social que já até sai andando sozinha, um microfone na lapela e pronto: começamos mais uma live.

O combo guru jogou a rede e a minha mãe havia se tornado o peixe.

Fazia alguns meses desde que o novo empreendimento dela havia começado. Algumas vendas foram feitas, mas nada muito expressivo. O que poderia ser a causa disso?

Obviamente, ela precisava dar o famoso "próximo passo".

E, para você não cair nessa conversa, vou pegar o caso concreto mais recente que vivenciei: a imersão Million do guru Wendell Carvalho.

Se você não veio de uma família rica, faça uma família rica vir de você

Se você mora em São Paulo, é possível que você tenha visto esse outdoor na rua com essa mensagem.

Se você não veio de uma família rica, faça uma família rica vir de você

Apesar de soar nobre, é apenas mais uma estratégia de vendas. Explico:

A ideia é simples: associar a sua vontade de enriquecer com um motivo justo e nobre.

Quem não quer enriquecer? O problema é que a maioria das pessoas não está disposta a assumir uma imagem gananciosa de si mesma, ou egoísta, dinheirista etc etc.

E isso nos leva ao segundo passo da estratégia do senhor Wendell Carvalho:

Talvez 1 milhão de reais seja muito para você. Suas crenças limitantes não permitem e seus sabotadores estão te impedindo de ter o sucesso que você realmente deseja.

Pois bem: baixemos a promessa.

Que tal aprender a fazer 28 mil reais por mês?

Ora, muito mais sensato, não?

Mas claro: para aprender o tal plano de 28 mil você precisa passar o cartão mais uma vez – afinal, existe algum jeito de você mostrar que está realmente comprometido em "transformar a sua realidade"?

Dessa vez, o evento não era online, mas presencial.

Ela foi para São Paulo com o dinheiro das trufas. Aqueles 4 ou 5 mil reais que haviam entrado nos últimos três meses foram usados com a passagem, com a reserva do hotel e, claro, com o ingresso do evento.

"Este é o próximo passo"

"Aqui está para você sair de onde está agora e alcançar o próximo nível"

Infelizmente, o roteiro não é novo e sempre se repete.

Não se trata de vender apenas uma ilusão. Não, não…o buraco é muito mais embaixo.

O que esses gurus vendem por aí não é mera ilusão, mas esperança.

A esperança de ter um futuro melhor, de ser um pai ou uma mãe melhor. A esperança de dar uma vida melhor aos seus filhos.

Motivos nobres, sem dúvida. Mas, cá entre nós, eles venderiam tanto caso não associassem seus produtos a, justamente, motivos nobres?

Voltemos ao evento em São Paulo.

Foram 3 dias de completa lavagem cerebral. Ela conversou com ele e mais uns 8 caras que vivem de pirâmide no marketing digital, que nem ele.

E eu pensei que depois desse evento, ela ia cair do cavalo. Enxergar de perto o tamanho do golpe que ela tava tomando, mas não… ela voltou mais fascinada ainda.

Mais motivada, mais disposta a dar o próximo passo – e agora estava considerando entrar na mentoria de (pasmem!) 40 mil reais do tal guru.

E agora vocês devem estar se perguntando: mas o seu pai não faz nada?

O meu pai?

Ela levou ele junto! Porque o cara é tão safado que você comprava um ingresso e ganhava dois, então ela pegou e carregou meu pai com ela pra essa lavagem cerebral coletiva.

Meu pai trabalha ali na fábrica de colchões, recebe um salário tranquilo, paga as contas, a mensalidade da minha faculdade de história e já me deu uma grana pra eu colocar na bet.

Só que ele foi com ela e voltou falando que ia largar o emprego.

Eu tenho 32 anos, desde que eu me entendo por gente meu pai trabalha lá na fábrica e agora, prestes a aposentar, ele falou que não quer ser mais CLT.

Ele quer ser “dono do próprio tempo”, vai ser “rico por conta própria” e, finalmente – segundo ele – vai ser LIVRE.

Então ele voltou desse curso com a certeza de que ele e a minha mãe iriam viver de trufas. Que eles iriam multiplicar o negócio e pronto.

Eu sei que parece que tudo o que estou falando aqui é mentira, mas você pode conferir com seus próprios olhos, é só abrir o Instagram e procurar por @wendellcarvalho e BOOM: o pack guru estará na palma da sua mão.

Talvez você até veja alguma foto da minha mãe e do meu pai se abraçando por lá.

Foto que vai ser mera lembrança, porque sem o dinheiro das trufas e com meu pai desempregado, o que será de nós? 

Obrigado, sr. Wendell Carvalho, o seu trabalho de guru foi concluído com sucesso.

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