Voleio ou bicicleta? Veja como a ciência explica o golaço de Richarlison

Para o professor Luis Augusto Teixeira, da EEFEUSP, que estuda a biodinâmica do movimento, jogada foi 'obra de arte da motricidade'

Paulo Guilherme Guri

Richarlison gira o corpo e alcança a bola no ar com a perna
Richarlison gira o corpo e alcança a bola no ar com a perna
Amanda Perobelli/Reuters - 24/11/2022

O golaço de Richarlison na vitória do Brasil sobre a Sérvia rendeu, entre vários memes, uma montagem com a foto do camisa 9 com o corpo suspenso no ar, os braços abertos e a perna esticada tocando a bola para o chute certeiro. Tudo desenhado com ângulos perfeitos. Mas, como explicar uma jogada tão difícil sendo executada com tamanha precisão em um jogo de uma Copa do Mundo? E, afinal, foi um gol de voleio ou de bicicleta?

“Foi uma obra de arte da motricidade”, explica Luis Augusto Teixeira, professor da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFEUSP), onde é chefe do Laboratório de Sistemas Motores Humanos e diretor do Departamento de Biodinâmica do Movimento do Corpo Humano. A motricidade refere-se a sensações conscientes do ser humano em movimento intencional e significativo no espaço-tempo objetivo e representado, e envolve percepção, memória, projeção, afetividade, emoção e raciocínio, entre outros fatores.

No lance do Gol, Richarlison recebe um passe de Vinicius Junior, domina com o pé esquerdo já erguendo a bola para a altura de sua cabeça, joga o corpo para trás e gira lançando a perna direita para o alto em direção à bola. Para poder efetuar o chute, Richarlison precisa também tirar a perna de apoio (esquerda) do chão para que a direita alcance a bola com a força necessária do movimento.

 “Foi um ato altamente criativo, que requer não apenas saber fazer, mas sobretudo vislumbrar a possibilidade de aplicação daquele movimento e realizá-lo em um intervalo de tempo curtíssimo”, diz Teixeira, que desenvolve atividades científicas na área de comportamento motor, com ênfase em lateralidade e controle postural. Veja abaixo a entrevista com o especialista?

Blog do Guri - Como um atleta consegue executar esses movimento de girar o corpo, lançar a perna de apoio e chutar com a outra perna uma bola que está na altura de sua cabeça? Foi um gol de bicicleta?

Luis Augusto Teixeira - Neste caso, mesmo com toda a plasticidade, creio que a definição mais adequada para o chute seria “voleio”. Para uma bicicleta legítima, o jogador deveria estar de costas para o gol e fazer movimentos com as duas pernas, uma lançada ao alto e em seguida a outra golpeando a bola, se assemelhando a uma pedalada. Daí o nome de “bicicleta”. O Richarlisson no momento do chute estava de lado para o gol e usou apenas a perna de chute para finalizar. De qualquer maneira, o movimento feito pelo Richarlisson foi bastante desafiador em função de ter dominado a bola com a perna não-dominante (olha a importância estratégica da habilidade bilateral), do giro rápido para posicionar o corpo em função da posição da bola e chute com a bola em posição alta. Outro detalhe: apesar de toda essa mudança espacial em um breve intervalo de tempo, ele não perdeu a orientação do gol e de onde estava o goleiro, chutando em um ponto fora de alcance. Uma obra de arte da motricidade! 

O professor Luis Augusto Teixeira (no detalhe) analisa a motricidade de Richarlison no gol 
(Fotos: Divullgação/EEFEUSP e Lucas Figueiredo/CBF) 

Blog do Guri - Como é a programação mental do jogador para planejar e executar esse movimento com tamanha precisão?

Luis Augusto Teixeira - Tem sido veiculada uma imagem do treino em que ele acerta um voleio muito parecido com este gol. Certamente treinar uma coordenação complexa como esta é indispensável para conseguir fazer durante o jogo. Por outro lado, as condições específicas que se apresentam em um jogo são únicas, tais como a forma como a bola chega, posicionamento do chutador em relação à trave e marcação que está recebendo. 

Neste momento, o jogador tem que produzir um movimento único a partir de suas experiências motoras prévias. Não é apenas a reprodução daquilo que foi feito nos treinamentos, mas algo novo. É um ato altamente criativo, que requer não apenas saber fazer, mas sobretudo vislumbrar a possibilidade de aplicação daquele movimento e realizá-lo em um intervalo de tempo curtíssimo (estimo que menos de 0,5 segundo).

Blog do Guri - Richarlison executou um movimento semelhante ao do gol no último treino antes do jogo. Como a repetição ajuda no aprimoramento do exercício?

Luis Augusto Teixeira - Além do que abordei na resposta à questão anterior, vale a pena destacar a importância da variabilidade de prática, buscando criar boas condições durante o treinamento para que o jogador transfira o que treinou para a situação de jogo. Como se trata de ambiente instável, a capacidade e generalização é fundamental para o sucesso. Quanto mais realísticas e diversificadas forem as condições de treinamento, maiores as chances de generalização durante o jogo.

Blog do Guri - Fatores psicológicos podem atrapalhar atleta (no caso se ele pensar que está numa Copa do Mundo e não pode falhar em um lance assim)? O segredo seria automatizar tudo de forma a não pensar em nada além da execução do movimento?

Luis Augusto Teixeira - Bem aqui temos uma questão distinta, que é de dimensão psicológica. Muitos jogadores possuem habilidade excepcional, mas na hora de uma competição importante não conseguem desempenhar o que podem por medo do fracasso. A automatização de movimentos será sempre essencial para o ótimo desempenho motor, mas nesta questão uma boa preparação psicológica deve trazer melhores resultados.