A Costa do Marfim foi campeã da Copa Africana de Nações de 2015 com alguns dos principais jogadores da história do país. Entre eles, nomes como o zagueiro Kolo Touré, o volante Yaya Touré e o atacante Gervinho. Em comum, os três foram revelados por um técnico brasileiro: Joel Carlos Gustavo, que morreu em 2012.
O trio é fruto das categorias de base do ASEC Mimosas, um dos principais clubes do país da África Ocidental. A equipe ainda revelou nomes históricos do futebol marfinense, como Salomon Kalou, Emmanuel Eboué, Romaric, Didier Zokora, Aruna Dindane e Siaka Tiené – todos eles ex-alunos do treinador brasileiro.
Nascido em Niterói (RJ), Joel Carlos Gustavo teve uma carreira discreta como jogador no futebol brasileiro durante os anos 1980. Foi revelado pelo Vasco, mas passou boa parte da carreira no América-MG, entre 1983 e 1987. Depois, vestiu as camisas de Mogi Mirim, Caxias, Mixto (MT) e Gama, no qual se aposentou em 1990 aos 27 anos.
Ao pendurar as chuteiras, Joel teve a chance de trabalhar na África. Primeiro, como assistente técnico na Burkina Faso em 1990. Depois, na Costa do Marfim a partir de 1994. Resultado: ficou em Abdjian por quase 20 anos e teve participação fundamental na formação de nomes históricos do futebol local.
“Tem gente que não conhecia o meu pai, o estilo de jogo dele”, diz Jocimar, um dos filhos do treinador, que compara o estilo de Joel aos de técnicos como Pep Guardiola (Manchester City) e Fernando Diniz (Fluminense). “Esse estilo de Diniz é o estilo que meu pai sempre ensinou para a gente - eu também fui formado por ele, desde os oito anos de idade. Sempre a posse de bola, no máximo dois toques de bola. Perdeu, pressiona alto. Todo mundo tem que saber jogar com os dois pés, inclusive o goleiro”, descreve.
Entre Brasil, Burkina Faso e Costa do Marfim, Joel teve seis filhos com a esposa, Lucimar – os quatro mais jovens já nascidos em Abdjian. Dois tentaram carreira nos gramados. Entre eles, Jocimar, que começou no próprio ASEC Mimosas antes de buscar oportunidades em países como Emirados Árabes, Bélgica e Malta.
“No início, minha mãe não queria que eu jogasse futebol. Queria que eu estudasse, porque o futebol acabou afastando minha mãe dos pais dela aqui no Brasil. Ela não queria que acontecesse isso comigo. Quando eu fiz 18 anos, com muita teimosia, faltando às aulas, aí não teve jeito. Comecei a jogar bola com outro time, e o meu pai falou: ‘Por que você está jogando com outro time se eu estou aqui?’”, explicou o filho de Joel.
“Lá ele já pegava os meninos nos bairros com 8, 9 anos de idade, e esses meninos iam crescendo e aprendendo o futebol. Jogavam bola descalços no gramado, e depois usavam a chuteira. Quando eu cheguei, não peguei isso. Cheguei grande, com chuteira. Tinha coisa que eles já sabiam fazer que eu tive que aprender ainda. Mas deu para ficar quatro ou cinco anos nessa escolinha, e depois ir para o time principal.”
Vinda ao Brasil sem falar português
Na época, a família – já adaptada à nova realidade – conversava praticamente apenas em francês dentro de casa. A necessidade de adotar o português só veio a partir da mudança para o Brasil em 2015, quase três anos após a morte prematura do treinador.
“A gente não tinha o costume de conversar em português entre nós - só quando meu pai chegava do trabalho que ele conversava com a minha mãe e eles conversavam algumas coisas. Com a gente mesmo, nem tanto. A gente sabia falar algumas palavras, mas não eram nem palavras de se formar uma frase. A gente aprendeu a falar o português aqui no Brasil”, explicou a filha Marly, também nascida na Costa do Marfim.
“A gente tinha contato com essas pessoas da embaixada, que de seis em seis meses faziam festas onde todos os brasileiros se reuniam. Quando a gente ia, a gente conseguia entender. Lá, todo mundo falava português, e por mais que a gente falasse francês, dava para entender. Mas não dava nem para se comunicar em português, só bom dia ou boa noite. A gente aprendeu português aqui, sem nem estudar.”
Joel morreu em julho de 2012, aos 49 anos, em decorrência de uma parada cardíaca. A família então procurou o Ministério das Relações Exteriores para voltar ao Brasil. O sinal verde veio em 2015.
“Morava todo mundo junto, menos meu pai. O relacionamento dele com a minha mãe não era como antes. Depois que ele faleceu, minha mãe pediu para o Governo do Brasil a possibilidade de poder trazer todo mundo de volta para cá. Com a resposta, ela conseguiu o passaporte de todo mundo para vir para o Brasil”, explicou Marly.
A filha de 26 anos, que hoje trabalha como trancista, ainda carrega no sotaque a influência da criação francófona. Na vinda para o Brasil, precisou deixar para trás com a família a vida em Abdjian – que, se não permitia luxos, tinha alguns confortos.
“A gente estudava num colégio que não era nem público, nem particular. Era privado, e a gente estudava integral, o dia todo. Meu irmão já tinha parado de estudar, porque ele estava jogando com o meu pai. O restante só estudava em período integral”, explicou. “Quando a gente chegou ao Brasil, quem estudava ficou um ano parado para poder trocar os documentos, passar tudo para o português. A gente já estudava, mas quando a gente chegou, teve que ficar um ano parado. Aí a gente começou a conversar um pouquinho, aprender muito mais (o português).”
‘Você não consegue mais alcançar os jogadores’
Ao chegar à Costa do Marfim em 1994, Joel Carlos Gustavo trabalhou como técnico do AS Oumé, da primeira divisão nacional. Após uma rápida passagem, associou-se ao francês Jean-Marc Guillou para fundar a Mimosifcom, um projeto de formação de jogadores vinculado ao ASEC Mimosas.
O programa se tornou a principal escolinha de futebol do país, iniciando a formação de diversos jogadores internacionalmente reconhecidos. Nem todos, porém, mantiveram proximidade com o brasileiro.
“Quando a gente podia falar com eles, ver eles, quando eles chegavam para representar a seleção marfinense, a gente ia para o hotel onde eles estavam. Meu pai ia e me levava. Me levou umas duas, três vezes, e levou também minha mãe para falar com Didier Zokora. Depois também com o Kolo Touré. Quando começam a ficar famosos, você não consegue mais alcançar eles. Eles não frequentam mais os mesmos lugares, eles não deixam mais as pessoas se aproximar. Quando eles voltavam à seleção, você não podia mais chegar perto. Você fala ‘sou eu, sou eu’, eles olham de longe, falam ‘tudo bom?’ e vão embora”, explica Jocimar, 35 anos e atualmente desempregado após trabalhar com um tio no setor pesqueiro.
Mas alguns jogadores mantiveram as portas abertas a Joel Carlos Gustavo. “A pessoa de quem a gente podia ir na casa dele - e eu já fui na casa dele, almoçava, jantava - era Aruna Dindane. Kolo Touré também, a gente já foi na casa dele. Ajudou bastante depois que ele faleceu. Kolo Touré procurou, mandou e-mail, deu o número dele quando estava no Arsenal para a gente ligar para ele. Ele falou: ‘É só me ligar, qualquer hora do dia, qualquer momento. Se eu não atender, é porque eu estou treinando, estou jogando. Quando eu puder, eu retorno, seja por e-mail ou ligação’.”
A família já estava no Brasil quanto o atacante marfinense Salomon Kalou defendeu o Botafogo, entre julho de 2020 e abril de 2021. Mas não houve sucesso nas tentativas de contato com o compatriota, ex-jogador do Chelsea.
“Eu mandei mensagem no Instagram dele, mas como não é ele que responde… Mandei mensagem também para o Yaya Touré. Não tive resposta do Salomon Kalou, nem de Yaya Touré. Infelizmente, não são eles que respondem. Pode ser que a pessoa tenha visto, mas não passou para eles”, lamentou Jocimar.
Orgulho da Costa do Marfim
Na Copa Africana de Nações 2023, a anfitriã Costa do Marfim está no Grupo A. Estreou vencendo a Guiné-Bissau por 2 a 0, com gols de Seko Fofana e Jean-Philippe Krasso, dois jogadores nascidos na Europa e sem passagens por clubes marfinenses. Nesta quinta-feira (18), enfrenta a Nigéria, que estreou empatando por 1 a 1 com a Guiné-Equatorial.
Para Marly, ver a seleção da Costa do Marfim em campo é motivo de festa. É uma oportunidade para se reaproximar do país onde nasceu e viveu até a adolescência.
“Todas as vezes que eu vejo eles jogando e tem um jogo na televisão, eu sinto orgulho. Ainda mais esses meninos da idade do meu irmão, que hoje estão em um time grande. Eu fico muito orgulhosa pelo trabalho que ele (Joel) fez. Eu estou muito empolgada com essa CAN - parece que eu estou lá, vivendo essa Copa. Estou assistindo todos os jogos - mesmo trabalhando, eu boto no trabalho”, afirmou ela, sem esquecer do papel fundamental do pai no futebol do país.
“Acho que, se ele estivesse vivo, ele ficaria muito feliz pelo que ele fez, pelo legado que ele deixou. Como esses jogadores hoje que estão dando muita importância no futebol, estão crescendo na vida. É muito reconfortante ver essas coisas”, diz.
“Às vezes, a gente quer botar a humildade de lado e falar: ‘Meu pai era um grande jogador, era o brasileiro mais conhecido da Costa do marfim, era muito importante’. É muito bom.”
Para Jocimar, o pai só não teve mais reconhecimento por não ter trabalhado em equipes da Europa. Hoje, é um defensor da importância de Joel Carlos Gustavo no futebol.
“Quem conheceu e viu o futebol dele - os amigos dele, os treinadores que chegaram a treinar com ele na Costa do Marfim, que conheceram ele - com certeza está orgulhoso. Só que quem tem o mérito é Guardiola, que revolucionou o futebol, é Diniz, que revolucionou o futebol no Brasil. Mas se você parar para olhar, em 1995, já tinha um trabalho feito - mas infelizmente não era o mesmo continente. Era o continente africano. É isso que magoa um pouco, mas não tem problema. O futebol é assim.”