"Vocês precisam confiar na ciência. Vocês precisam confiar no que dizem e sugerem os cientistas." Em meus 28 anos de vida, nunca vivenciei um momento em que fosse tão urgente a confiança do povo na ciência quanto na pandemia de covid-19. Não é exagero dizer que em vários momentos milhões de vidas dependiam dessa confiança.
Lembro perfeitamente que na época, no calor das emoções e tendo como motivação a polarização que continua guiando o país desde então, qualquer indivíduo que esboçasse o menor sinal de uma confiança menos do que plena era logo tido como negacionista, anticiência e, para os idealistas mais simplistas e rasos, alguém do time do mal.
Antes que alguém se assuste: Não. Não sou negacionista e não estou aqui para corroborar com a anticiência. Sou alguém próximo da academia, recém formado pela USP e almejante a fazer pós graduação em políticas públicas na UFRJ.
A provocação que quero trazer é outra. Vivo em dois mundos e hoje entendo que isso é um privilégio para a minha formação. Sou nascido e criado no bairro com mais favelas da minha cidade e estudei em uma das melhores e mais elitistas universidades do país.
Já ouviram aquela frase: "A confiança precisa ser conquistada"? Pois bem, salvo algumas narrativas clichês em que ela é utilizada, para mim ela faz bastante sentido e acredito em seu significado.
Fui, mesmo com muita luta e esforço, privilegiado o bastante para sair da bolha social de pobreza e falta de informação em que nasci e ingressei em uma universidade de qualidade. Em outra bolha, na verdade, mas desta vez uma bolha em que o conhecimento científico é construído. Lá passei a ter um contato próximo com a construção da ciência brasileira e admirei fortemente seus pesquisadores. Assim, ganharam minha confiança.
O mesmo, infelizmente, não aconteceu com minha mãe, pai, avó, irmãs, vizinhos e com os milhões de brasileiros que estão espalhados por favelas, comunidades e cidades de todo o país. Estes que, mesmo sem saber, são contribuintes financeiros, via impostos, de nossas universidades públicas, e portanto de nossa construção científica. No entanto, não são convidados a fazer parte desse incrível universo, pelo menos não da forma que deveriam.
Batalhas perdidas
Minha mãe tem um pequeno comércio na porta de casa e vende salgados por 1 real. Me lembro de na época da pandemia ouvir os clientes constantemente duvidando do que viam na TV e propagando falas que iam contra a ciência.
Eu, claro, tentava argumentar com a "voz da razão". Temo dizer que perdia quase todas as batalhas. Talvez meu poder de oratória não estivesse tão afiado, mas eu sentia que para ganhar eu simplesmente precisava que eles confiassem plenamente no que diziam nossos pesquisadores e cientistas e isso não iria ocorrer. A razão é simples: eles não foram necessariamente formalmente apresentados e, de fato, não havia uma relação de confiança. Na verdade, infelizmente, não havia relação alguma e eu entendia claramente isso.
Aqui vale deixar claro: em nenhuma vírgula eu estou questionando os resultados, a validade ou a seriedade de nossa ciência. Entendo claramente sua importância para o desenvolvimento do país, para a saúde e bem estar do povo, para a educação e tecnologia, para a infraestrutura e tudo o que você pode estar pensando.
Inclusive, como já relatei em um texto, nossos pesquisadores, sobretudo a galera que está na pós-graduação, merecem nada menos do que a nossa gratidão. Dado o quanto se dedicam e produzem e o quanto, por outro lado, são desvalorizados.
Neste texto minha discussão é objetiva: há no país uma lacuna gigantesca entre a ciência e o povo. Dentro do conjunto de momentos em que o construir científico tem a participação do povo, a maioria deles segue um padrão como: a aplicação de questionários ou entrevistas em uma comunidade para colher dados ou perspectivas. Depois esses agentes voltam para as universidades, escrevem um artigo, o publicam e nunca mais retornam para as comunidades.
Assim, em algum nível e mesmo que não propositalmente, há uma certa subestimação do potencial do povo de contribuir com a nossa produção acadêmica e as pessoas se sentem excluídas.
O potencial do povo
Li recentemente, em um artigo da Sheila Jasanoff, cientista indiana que leciona em Harvard, o termo coprodução. De forma simplista, o termo nasce motivado pelas mesmas provocações deste texto e propõe um fazer científico mais próximo entre as universidades e as comunidades. Defensores do termo entendem o potencial de ambos agentes e acreditam que o poder dessa parceria é gigantesco.
Me lembro de um post que costumava circular nas redes sociais. Assumia, sim, um tom clichê em algumas publicações, mas o conteúdo sempre me marcou muito. Era a imagem de um banner de divulgação científica nos corredores de uma universidade e uma pessoa da faxina olhando e aparentemente tentando entender. A legenda mais comum, e a mais acertada na minha visão, era: "A sua pesquisa é clara o bastante para a faxineira que ajudou a financiar?"
Sabemos que o meio acadêmico é, muito mais do que deveria ser, marcado pelo ego. O ser humano, de modo geral, tem um certo instinto de se sentir diferente dos outros e parte de um grupo seleto. Esse instinto trabalha para aumentar ainda mais a lacuna aqui discutida e isso é um problema.
Confesso que gostaria de ver essa discussão ganhar mais atenção, especialmente no pós-pandemia, mas não é o que está acontecendo. É urgente falarmos sobre isso. A pandemia mostrou: vidas dependem dessa confiança. O desenvolvimento do país depende da quebra desse muro.
Aqui eu convido e procuro vocês, pessoas que fazem nossa ciência e que compõem as nossas universidades, a colocarem energia para construir pontes com o povo e com a comunidade. Não mais naquele caráter apenas experimental, hierárquico e vertical, mas sim com uma relação horizontal e de real valorização. Por favor, entendam: há tanta sabedoria no povo quanto nas obras acadêmicas que tanto admiramos e não podemos apenas pedir por uma invicta confiança em um cenário em que não há nem mesmo uma relação.
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Vozes da Educação é uma coluna quinzenal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do programa no Instagram em @salvaguarda1
O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.
Autor: Vinícius De Andrade