"Obrigado por terem escolhido a Lufthansa. Tenham todos os uma estadia SEGURA no Rio de Janeiro e no Brasil”. Essa frase foi dita pelo comandante de um voo lotado de turistas que me trouxe de Munique para o Rio há duas semanas. Estou acostumada, como viajante frequente, a ouvir "tenhamos um voo seguro”. Mas essa foi a primeira vez que escutei um piloto desejar uma ESTADIA segura. E olha que já viajei para alguns lugares que não são modelo de segurança.
Ouvir o piloto falar assim do meu país e da minha cidade natal me fez rir de nervoso e comentar com amigos, em um surto de escapismo, que os alemães eram "diretos demais”. Só que o piloto estava coberto de razão. E não demorou mais que uma semana para que isso fosse jogado na minha cara com força. Na quinta-feira, 5 de outubro, acordamos com a notícia da execução de três médicos que participavam de um congresso de ortopedia na cidade.
Os ortopedistas Diego Ralf Bomfim, Marcos de Andrade Corsato, Perseu Ribeiro Almeida e Daniel Proença tomavam uma cerveja em um quiosque em frente a um hotel de luxo na Barra da Tijuca, quando foram alvejados. Diego, Marcos e Perseu foram mortos. Daniel escapou com ferimentos. De acordo com a polícia, três homens desceram de um carro e efetuaram pelo menos 33 disparos contra os médicos.
Barbárie em pleno "asfalto"
Essa barbárie aconteceu em pleno "asfalto” privilegiado, em um dos metros quadrados mais caros da cidade. Se um conhecido alemão me perguntasse se era perigoso tomar uma cerveja em um quiosque na praia da Barra da Tijuca, em frente ao hotel onde se hospedaria, eu responderia: "Claro que não”.
No dia do horror, passamos por todo tipo de sentimento: o pavor de imaginar que a chacina poderia ser um crime político contra Sâmia Bomfim, que recebe centenas de ameaças de morte (estendidas à sua família), por conta de sua atuação e também por ela ser uma mulher feminista; o choque; o choro. E a incredulidade, quando a polícia civil do Rio de Janeiro afirmou que a razão do crime poderia ser o fato de um dos atingidos ser parecido fisicamente com um miliciano que estaria jurado de morte.
O assassinato teria sido um "engano”, de acordo com o secretário de Polícia Civil do Rio de Janeiro, José Renato Torres.
No dia seguinte, a Polícia Civil do Rio informou que os assassinos dos médicos teriam sido mortos, e seus corpos, encontrados em dois carros na zona oeste. Ou seja: uma guerra.
A Polícia Federal também acompanha as investigações, que ainda estão em andamento.
Se você fosse gringa e lesse essas notícias você viajaria de férias para o Rio de Janeiro? Eu não.
É claro, a guerra não começou semana passada. Ela existe desde que me lembro por gente. Mas piora todo dia. De acordo com o Instituto Fogo Cruzado, 1.112 pessoas foram atingidas por arma de fogo na região do Grande Rio apenas no primeiro semestre de 2023.
No dia 5 de outubro, a barbárie avançou até uma área nobre da Barra da Tijuca, mas inocentes são mortos diariamente no Rio de Janeiro nas favelas e zonas periféricas. E a vida segue, como se nada tivesse acontecido. Essa é uma cidade onde não só médicos brancos são mortos "por engano pela milícia”, mas também onde crianças são mortas "por engano” pela polícia, como já escrevi aqui.
O piloto tinha toda razão. E a execução dos médicos provou mais uma vez que ao viajarmos para o Rio de Janeiro, e para o Brasil em geral, não basta que a gente diga: "divirta-se”. É preciso também: "tome cuidado”, ou "tenha sorte”. Você pode estar fazendo algo teoricamente muito seguro, como tomar um chope com os amigos depois de um dia de conferências e ser executado. É de dar enjôo. E não para aí.
Linchamento dos Jardins
Não deu para eu me recuperar emocionalmente. No dia seguinte ao assassinato dos médicos, meu amigo Vilmar Ledesma, um jornalista com mais de 30 anos de profissão que mora nos Jardins, uma das áreas mais nobres de São Paulo, narrou nas redes sociais outro episódio de barbárie:
"Houve um roubo na rua, acho que de celular. Ouvi uma gritaria imensa antes de sair de casa. E quando estava na rua, havia uma euforia por onde passava. O cara saiu correndo, foi perseguido e acabou linchado. O corpo estava estendido no chão (vi um pedaço do corpo da esquina), no quarteirão da Bela Cintra entre Jaú e Itu, Jardins/SP, Havia uma euforia de carnaval no ar, e ouvi vários comentários elogiando o linchamento. Voltei pra casa arrasado e com vontade de fugir para algum lugar longe dessa insensatez. Socorro!”
Sim, uma pessoa foi assassinada por populares na Rua Bela Cintra, um dos endereços mais caros da rica capital paulistana. Esse tipo de fato deve ser rotineiro, já que o linchamento dos Jardins nem foi noticiado pela mídia.
"Desejo a todos uma estadia segura”. O piloto alemão, repito, estava coberto de razão ao nos desejar isso. Ele podia ter acrescentado que "sacos de papel, no caso de enjoo, estariam disponíveis na cadeira à frente.”
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.
Autor: Nina Lemos