Com Parasita, a Coreia do Sul ganhou o Oscar de Melhor Filme em 2020. Seus programas de televisão disparam a audiência no streaming e estrelas do K-pop dominam as paradas globais. E nesta quinta-feira (09/10), sua principal romancista, Han Kang, se tornou a 18ª mulher e a primeira asiática a ganhar o prêmio Nobel de Literatura. Aos poucos, o país define seu espaço como uma potência cultural global. Como isso aconteceu?
A partir do fim da década de 1990, os dramas de TV coreanos – os "doramas" – e os ídolos do K-pop começaram a ganhar força nos países asiáticos, como a China e o Japão, marcando o início da hallyu – termo chinês que significa "onda coreana”.
Mas foi com o sucesso de Psy Gangnam Style, em 2012, que a hallyu chegou com força ao Ocidente.
Na década seguinte, os sucessos se acumularam. A música infantil Babyshark disparou no YouTube e ficou gravada na memória de uma geração. A banda de K-pop BTS acumulou 23 recordes no Guinness Book, incluindo o de maior número de ingressos vendidos para um show online. Parasita, do diretor Bong Joon-ho, ganhou um Oscar inédito para o país, e a série Round 6 se tornou o programa de televisão em idioma diferente do inglês mais assistido da Netflix.
Tamanha exportação cultural valeu cerca de 13,2 bilhões de dólares (R$ 74,2 bilhões) para a Coreia do Sul em 2022 – uma indústria maior do que a dos eletrodomésticos e dos carros elétricos. A maior parte desse valor, porém, foi composta por videogames como o jogo multiplayer online Battlegrounds Mobile, extremamente populares na Índia e no Paquistão.
O governo sul-coreano ainda tem como meta elevar a indústria ao patamar de 25 bilhões de dólares até 2027, com projeto de entrada em novos mercados na Europa e no Oriente Médio.
"Momentos dramáticos" moldam produção cultural
Para o diretor Bong Joon-ho, o segredo do sucesso cultural do país do leste asiático é o fato de todos terem vivido "momentos dramáticos”. Entre eles, estão a Guerra da Coreia nos anos 50, que deixou Seul preso num conflito com seu vizinho do norte, a ditadura militar, a ampla transformação econômica e a transição democrática.
Muitos "passaram por turbulências e eventos extremos" no país, disse Bong. Como resultado, "nossos filmes não podem deixar de ser diferentes”.
A Coreia do Sul "oferece aos criadores ampla inspiração e estímulo. É um lugar super dinâmico e turbulento", disse ele.
O renomado e polêmico cineasta sul-coreano Park Chan-wook respondeu na mesma linha, ao ser indagado sobre o segredo do sucesso cinematográfico de seu país. "Por que você não tenta viver na 'Coreia dinâmica'?"
Nobel é conquista mais recente
Transformar a história contemporânea em arte é o que a romancista Han Kang, de 53 anos, que acaba de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura de 2024, faz de melhor. Desde o anúncio, seus livros esgotaram nas prateleiras das livrarias do país.
Han falou sobre a experiência transformadora de aprender sobre um massacre ocorrido em 1980 em sua cidade natal, Gwangju, quando o então governo militar da Coreia do Sul reprimiu violentamente uma revolta democrática.
Ela contou que o pai lhe mostrou fotografias que incluíam os corpos espalhados das vítimas e cidadãos fazendo fila para doar sangue em meio ao caos, o que mais tarde inspirou seu livro Atos humanos (Editora Todavia, 2021).
Embora muitos autores sul-coreanos tenham se aprofundado nos temas do passado traumático do país, Han estabeleceu sua própria "estética literária marcante" ao abordar assuntos desafiadores, avalia Oh Hyung-yup, professor de literatura coreana na Universidade da Coreia e crítico literário.
A Coreia do Sul tem alguns dos piores índices de participação feminina na força de trabalho entre as economias avançadas, mas as mulheres têm sido pioneiras nas exportações culturais.
O romance de Han vencedor do Prêmio Internacional Man Booker A vegetariana (Editora Todavia, 2018), em torno de uma mulher que deixa de comer carne, é considerado um marco do ecofeminismo.
Como primeira asiática a ganhar um Nobel de Literatura, é apropriado que o trabalho de Han Kang aborde a violência de uma forma que os autores homens não fizeram no passado, comentou a crítica literária sul-coreana Kang Ji-hee à agência de notícias AFP.
"Han Kang reinterpretou esse tipo de luta interna", documentando comportamentos "que antes eram considerados simplesmente passivos, e deu a eles um significado totalmente novo”, explicou Kang.
Indústria cresce de forma orgânica
O sucesso crescente das exportações da cultura coreana em todos os setores, do cinema à gastronomia, com pratos coreanos como o kimchi e o bibimbap ganhando popularidade no exterior, parece fazer parte de um plano estruturado.
No entanto, embora o governo sul-coreano tenha investido milhões no setor cultural, especialistas apontam que o sucesso ocorre em grande parte apesar do Estado, e não por causa dele.
Quando a ex-presidente sul-coreana Park Geun-hye estava no poder, de 2013 a 2017, a ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura foi uma dos mais de 9 mil artistas colocados numa lista de críticos ao seu governo, juntamente com Bong.
Algumas iniciativas do governo, por exemplo, o Instituto de Tradução de Literatura da Coreia (LTI Korea), afiliado ao governo, podem ter dado resultado, ajudando a levar obras como a de Han a um público global. Porém um número crescente de tradutores mais aventureiros em suas escolhas de obras também ajudou a trazer ofertas mais ousadas para o mercado internacional.
Em pleno ciclo de sucesso
Sucesso também gera mais sucesso em termos de exportação cultural: Os hábitos de leitura das estrelas do K-pop, por exemplo, impulsionaram a literatura sul-coreana.
Quando Jungkook, membro da banda BTS, foi visto lendo o livro de autoajuda I decided to live as me (Decidi viver como eu), de Kim Soo-hyun), isso provocou um frenesi de vendas, com centenas de milhares de cópias voando das prateleiras.
Por outro lado, o sucesso no mercado internacional contrasta com o esvaziamento no cenário doméstico. A "onda coreana" do K-pop passa por uma espécie de crise interna, com vendas em declínio e ações das principais agências da área despencando.
A suspeita é que, ao tentar ampliar seu apelo para um público global – apresentando-se em idiomas estrangeiros, chegando ao topo das paradas musicais nos principais mercados do mundo e sendo badaladas nos programas de entrevistas – essas bandas esqueceram suas raízes e correm o risco de se afastar dos mesmos fãs que ajudaram a catapultar suas carreiras.
gq/av (DW,AFP)