Decisão judicial não se discute, cumpre-se – esse costuma ser o bordão de diversas autoridades públicas ao se referirem a decisões finais do Supremo Tribunal Federal (STF). A depender de setores do Congresso, porém, isso precisa mudar.
Uma proposta de emenda à Constituição, a PEC 50/23, protocolada no final de setembro, dá à Câmara e ao Senado o poder de anular decisões da corte. A votação em dois turnos no Senado deve ocorrer nesta quarta-feira (22/11) após aprovação de um calendário especial.
Alguns ministros e ex-ministros do Supremo se manifestaram contra a iniciativa e indicaram que, mesmo que o Congresso a aprove, ela deverá ser derrubada pela corte, com potencial de criar mais atrito entre o Legislativo e o Judiciário. Entenda o que está em jogo.
O que a PEC propõe
O texto estabelece que o Congresso poderia derrubar uma decisão do Supremo já transitada em julgado "que extrapole os limites constitucionais".
Para isso, seria necessário que um terço dos membros da Câmara e do Senado propusessem um decreto legislativo, que precisaria ser aprovado por três quintos dos membros de cada casa, em dois turnos.
A justificativa do projeto afirma que a corte, por vezes, decide contrariamente à Constituição e, portanto, contra "a ampla maioria dos representantes do povo", o que colocaria em risco a democracia.
Por isso, argumenta, seria "fundamental" que houvesse um recurso capaz de "rever a decisão de afronta à vontade da ampla maioria do povo devidamente representado no Congresso Nacional".
O que dizem seus defensores
A PEC aglutinou apoio de deputados e senadores que dizem ser críticos ao ativismo judicial do Supremo.
Segundo eles, a corte estaria extrapolando suas competências ao julgar ações relativas, por exemplo, ao aborto, à posse de drogas ou ao marco temporal das terras indígenas.
Esses três exemplos foram citados pelo deputado federal Domingos Sávio (PL-MG), autor da PEC, ao defender o texto.
"O Brasil já tem uma lei que diz em que situação pode haver o aborto, mas o STF quer inovar, quer ir além, quer ele próprio legislar. Também quer legislar liberando a droga no Brasil, mas já tem lei dizendo que é crime", disse o deputado. "O direito de propriedade está sendo rasgado pelo STF", afirmou ainda, em referência ao marco temporal.
Qual é o contexto
Os três temas mencionados por Sávio estiveram na pauta do Supremo neste ano. Em setembro, o plenário da corte começou a julgar uma ação promovida pelo PSOL que defende a descriminalização do aborto nas primeiras 12 semanas de gestação. A ministra Rosa Weber, então presidente da corte, votou pela descriminalização, e em seguida o julgamento foi suspenso a pedido do ministro Luis Roberto Barroso, atual presidente do Supremo.
Também está em análise na corte um recurso que defende a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. Há cinco votos a favor e um contra a descriminalização do porte de maconha, e o julgamento foi suspenso em agosto por pedido de vista. A atual Lei de Drogas já não estipula pena de prisão para porte de drogas, mas também não estipula limites de quantidade, deixando isso para a interpretação das autoridades policiais e judiciais – que muitas vezes enquadram pessoas flagradas com pequenas quantidades de drogas como tráfico.
A tese do marco temporal, que estipula que os povos indígenas teriam direito a reivindicar em processos de demarcação somente as terras que estivessem ocupadas por eles na data da promulgação da Constituição, foi derrubada pelo Supremo em maio. Em setembro, o Senado aprovou um projeto de lei estabelecendo o marco, que acabou vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em outubro.
A crítica dos defensores da PEC 50/23 vai além desses temas. A proposta foi subscrita em peso por congressistas do PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, que durante seu mandato elegeu o Supremo como alvo preferencial de suas investidas, já que em última instância foi a corte que barrou iniciativas para questionar o sistema eleitoral e instituições democráticas.
O que dizem os críticos
A proposta recebeu a oposição de alguns ministros da corte. Barroso afirmou nesta segunda-feira (13/11), em evento em São Paulo, que a revisão de decisões do Supremo "é democraticamente inaceitável, é um modelo da Constituição ditatorial de 1937". "Em nenhum país democrático você tem decisões do Supremo revista pelo Congresso, mas o debate é legítimo e o Congresso é o lugar de isso acontecer", afirmou.
O ministro Gilmar Mendes, o mais antigo no tribunal, também associou a proposta à Constituição de 1937, outorgada durante o governo ditatorial de Getúlio Vargas. "Não faz sentido e é quebra da ideia de divisão dos Poderes. Tivemos experiência em 1937, com a Constituição polaca, constituição ditatorial de Getúlio Vargas, que dizia que o Parlamento, por dois terços, poderia anular decisões do Supremo e confirmar constitucionalidade de leis consideradas inconstitucionais pelo Supremo. Mas não houve Parlamento em 37, então, foi feito por decreto", afirmou Mendes.
"Isso precisa ser olhado com muitíssimo cuidado. Não tenho dúvida em dizer que é uma proposta absolutamente inconstitucional. Não passa por qualquer crivo de um modelo de Estado de Direito constitucional", completou o ministro.
O ex-ministro Celso de Mello também se opôs à PEC. Em artigo publicado no site Consultor Jurídico, ele afirmou que a iniciativa representa "um grave retrocesso histórico" e "subverte" a separação de poderes, já que o Legislativo passaria a ser uma instância revisora de decisões finais do Supremo.
Mello argumentou que a proposta ofende cláusulas pétreas da Constituição, que não podem ser alteradas, e que portando, caso seja aprovada, deveria ser derrubada pelo próprio Supremo. "Em nosso sistema jurídico, que consagra o postulado da democracia constitucional, 'o monopólio da última palavra' em matéria de interpretação da Constituição da República pertence, exclusivamente, ao Supremo Tribunal Federal, por efeito de expressa delegação que lhe foi outorgada por soberana deliberação da Assembleia Nacional Constituinte", escreveu.
Debate presente em outros países
Propostas para que o Legislativo tenha o poder de revisar decisões finais do Judiciário não são exclusividade do Brasil. Em abril de 2021, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, criou uma comissão para discutir propostas de reforma da Suprema Corte, e uma das ideias apresentadas em debate seria criar a possibilidade de o Congresso se sobrepor a algumas decisões da corte.
Uma das propostas da controversa reforma do Judiciário de Israel, apresentada pelo governo de Benjamin Netanyahu no início do ano e alvo de grandes manifestações de rua, também é dar ao Parlamento o poder de derrubar qualquer decisão da Suprema Corte do país.
Como pano de fundo, essas propostas costumam se basear em críticas a um excessivo ativismo ou politização das cortes constitucionais e de seus ministros, que afetariam negativamente o equilíbrio entre os poderes.
Há outras propostas de reformas menos drásticas que também buscam satisfazer a essas críticas, como reduzir a publicidade dos posicionamentos de ministros das cortes, criar mandatos para o cargo ou alterar as regras sobre decisões monocráticas e pedidos de vista, com o objetivo de reduzir o protagonismo individual de seus integrantes.
Uma reforma nesse sentido foi aprovada pelo próprio Supremo brasileiro em dezembro de 2022, na gestão de Rosa Weber. Uma mudança no regimento da corte estabeleceu um prazo de 90 dias para ministros que pedem vista devolverem os processos, acabando com o poder de integrantes do Supremo retirarem indefinidamente de pauta algumas ações de grande impacto.
A reforma também determinou que medidas cautelares tomadas individualmente sejam submetidas imediatamente à análise do plenário ou da turma, também para fortalecer o poder do colegiado sobre decisões monocráticas.
Autor: Bruno Lupion