Como funciona o aborto na Alemanha

Ilegal no papel, mas sem punição se realizado até 12 semanas de gestação após uma sessão de aconselhamento. Essa complicada formulação alemã é o resultado de uma longa luta que se estendeu até a década de 1990.

Por Deutsche Welle

Como funciona o aborto na Alemanha .
Como funciona o aborto na Alemanha
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O aborto é ilegal na Alemanha, mas não é punível se ocorrer sob certas condições. Na prática é possível interromper a gravidez nas primeiras 12 semanas de gestação. De acordo com o parágrafo 218 do Código Penal, uma mulher que pratica um aborto infringiu uma lei e "será punida com pena de prisão de até três anos ou multa".

Mas há exceções, e elas estão previstas no parágrafo 218a. A exceção mais frequente é a da chamada regra do aconselhamento, usada quando o aborto ocorre por iniciativa da gestante. Nesses casos, o aborto é possível se for feito até 12 semanas após a concepção e se a gestante comprovar que passou por uma sessão de aconselhamento.

O aspecto mais importante é que a decisão a favor ou contra o aborto deve sempre ser da mulher grávida. Os passos para abortar são os seguintes:

  • Em primeiro lugar, a gravidez deve ser confirmada por um médico e deve ser determinada com exatidão a semana de gravidez em que a gestante se encontra.
  • Depois, a gestante deve fazer uma consulta num centro de aconselhamento reconhecido pelo Estado, ao fim da qual ela recebe um certificado de que passou pelo aconselhamento.
  • Sem esse documento, qualquer mulher que fizer um aborto pode ser processada, assim como o médico que realizar o procedimento.
  • Depois da conversa de aconselhamento, a gestante tem mais três dias para refletir sobre sua decisão.
  • Só depois desse prazo, ele pode se dirigir a um médico e fazer o aborto.

Médicos temem ameaças e estigmatização

Encontrar esse médico nem sempre é fácil. Há anos que o número de médicos que fazem abortos diminui na Alemanha. Em 2003 havia cerca de duas mil clínicas e consultórios; no fim de 2022 eram menos de 1.100, segundo dados oficiais.

Assim, muitas mulheres que querem abortar precisam viajar para uma outra cidade, muitas vezes distante. Um dos motivos para a falta de médicos que fazem aborto é a estigmatização dos profissionais. Protestos diante de clínicas são comuns. E o aborto continua sendo ilegal e está no Código Penal, o que equivale a uma criminalização.

Especialistas citam ainda outros motivos: médicos idosos que fazem aborto estão se aposentando, e os mais novos temem sofrer ameaças. Além disso, afirmam, o tema é pouco abordado nas universidades de medicina ou na residência médica.

A carência também varia de um lugar para o outro. Regiões rurais são mais afetadas do que grandes centros urbanos. Nos estados da Baviera e de Baden-Württemberg, a carência é maior, principalmente no interior. Já na Saxônia, a associação de ginecologistas afirma não haver dificuldades.

O polêmico parágrafo 219a

Até junho de 2022, o parágrafo 219a proibia médicos de informar os métodos de aborto por eles oferecidos. Foi o governo do chanceler federal Olaf Scholz que aboliu esse parágrafo do Código Penal.

O ministro da Justiça, o liberal Marco Buschmann, chamou o parágrafo 219 de "absurdo e desatualizado". Embora o parágrafo 219 tivesse sido reformado em 2019, permitindo aos médicos listar o procedimento em seus sites, eles não podiam fornecer detalhes, como métodos e custos.

O governo destacou que a abolição do polêmico parágrafo permite a divulgação de informações, garantindo o acesso à informação para mulheres que buscam o procedimento, e ressaltou que a mudança não significa permissão para fazer propaganda comercial de abortos.

A segunda exceção

Um aborto também pode ser feito na Alemanha se um médico constatar que há sério risco para a vida ou para a saúde física e mental da gestante.

Nesses casos, a interrupção da gravidez é possível também depois da 12ª semana de gestação.

Porém, o aborto só pode ser feito se a gestante concordar com o procedimento.

Além disso, o procedimento deve obrigatoriamente ser feito por um médico. O diagnóstico médico deve deixar claro que o aborto é necessário para proteger a vida ou a saúde física e mental da gestante e que não há outra opção.

A terceira exceção

Também é possível abortar quando a gravidez resulta de um estupro.

Também nesse caso o aborto só pode ser feito com o consentimento da gestante, e o procedimento deve ser feito por um médico nas primeiras 12 semanas de gestação.

Um médico deve atestar que a mulher foi vítima de um crime sexual, e deve haver fortes indícios de que a gravidez resulta desse crime.

Não é necessário que a vítima tenha denunciado o crime à polícia.

Quantos abortos são feitos na Alemanha?

Na última década, o número total de abortos na Alemanha se manteve constante, em torno de cem mil anuais.

Segundo a estatística oficial, foram realizados 103.927 abortos no país no ano de 2022. Esse foi o maior número desde 2012. Em 2021 haviam sido 94.596.

Como em todos os anos, também em 2022 a ampla maioria dos casos foi feita por vontade da gestante (99.968). Em seguida, por indicação médica (3.924). Por fim, houve 35 abortos por questões criminais.

Ao todo, 70% das mulheres que abortaram em 2022 tinham entre 18 e 34 anos. Cerca de 19% tinha entre 35 e 39 anos.

Desde quando existe a lei atual?

A luta pelo direito de abortar tem uma longa história na Alemanha. Sob o nazismo (1933-1945), o aborto era severamente punível para mulheres que se enquadravam na definição de membro da “raça ariana” do regime. Mas, no âmbito da política de eugenia dos nazistas, a prática não era punida se a gestação envolvesse um feto com possíveis deficiências ou se os pais tivessem ascendência judaica.

Após a guerra, as duas Alemanhas inicialmente voltaram a adotar uma legislação restritiva da década de 1920. Na Alemanha Ocidental, muitas mulheres em busca de aborto acabavam se dirigindo para a Holanda. Em 1971, a Alemanha Oriental, sob regime comunista, legalizou o aborto até 12 semanas de gestação. Na Alemanha Ocidental, capitalista, o caminho foi mais tortuoso.

Em junho de 1971, a revista Stern, da Alemanha Ocidental, publicou uma matéria de capa com o título Nós abortamos. Nela forammencionados os nomes de 374 mulheres, e algumas tiveram até mesmo sua foto publicada na capa. Essa matéria é considerada o marco inicial da moderna luta das mulheres alemãs pela liberalização do direito ao aborto.

A matéria na Stern colocou o tema na ordem do dia na Alemanha Ocidental. Em 1974, no governo do chanceler social-democrata Willy Brandt, o Bundestag (Parlamento) aprovou uma reforma do parágrafo 218 para que o aborto nas primeiras 12 semanas não fosse mais punido.

Em 1975, a corte suprema derrubou a reforma afirmando que ela era inconstitucional. O argumento: segundo a Lei Fundamental (Constituição alemã), é dever do Estado proteger a vida, e isso vale mesmo se essa vida ainda estiver se desenvolvendo e ainda não tiver nascido.

Assim, segundo o veredito, o aborto deve ser punido salvo a continuidade da gestação seja algo inaceitável para a gestante, como em caso de riscos à vida ou de estupro.

Em 1976, o Bundestag transformou o veredito em lei, endurecendo novamente o parágrafo 218.

Em 1990, a Reunificação reacendeu o debate, pois a lei da Alemanha Oriental previa que a gestante podia decidir livremente se queria ou não abortar nas primeiras 12 semanas de gestação.

O acordo para reunificação das duas Alemanhas, porém, exigia uma lei única em todo o país. A campanha pelo direito ao aborto recomeçou e, em 1992, o Bundestag aprovou nova reforma, introduzindo a possibilidade de aborto após 12 semanas caso tenha havido antes um aconselhamento. Nesse caso, o aborto não seria ilegal, decidiu o Parlamento.

A questão foi, mais uma vez, levada à corte suprema. Em 1993, os juízes de Karlsruhe mais uma vez contradisseram o Parlamento com o argumento que a Lei Fundamental obriga o Estado a proteger a vida, mesmo aquela que ainda não nasceu. Assim, o aborto é ilegal, decidiram os juízes.

Porém, se houver aconselhamento, o aborto pode permanecer impunível durante as primeiras 12 semanas — mas deve continuar sendo considerado ilegal, ou seja, uma violação da lei. Só assim as mulheres podem ser conscientizadas, durante o aconselhamento, de que têm o dever legal de gestar a criança. Essa interpretação foi transformada em lei em 1995 e vale até hoje.

Autor: Alexandre Schossler

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