Em 1973, o Bronx era um dos bairros mais perigosos dos Estados Unidos. Roubos, furtos e assassinatos eram parte do tristonha quotidiano dos moradores. Os jovens se organizavam entre gangues de rua que controlavam os quarteirões e brigavam entre si.
O Bronx pegava fogo – literalmente. O Corpo de Bombeiros ia com frequência apagar incêndios em blocos de apartamentos, enquanto os senhorios tentavam fraudar as seguradoras.
As ruas eram cobertas de lixo e entulho; os parques, imundos, atraíam traficantes, prostitutas e cafetões. A infraestrutura local estava em ruínas, diversos edifícios residenciais estavam vazios e depredados.
O Bronx e outras partes de Nova York, como Lower East Side, Bedford-Stuyvesant ou o Harlem, chegavam a evocar algumas cidades alemãs após a Segunda Guerra Mundial, afirmou certa vez o fotojornalista Allan Tannenbaum.
Tempos difíceis no Bronx
A pobreza era grande, devido ao grande número de desempregados – não por falta de vontade de trabalhar, mas simplesmente porque não havia emprego. Quem tinha condições, deixavam o bairro, se conseguisse encontrar em outro lugar um senhorio que o aceitasse.
Mesmo após oficializado o fim da segregação racial nos EUA no início dos anos 1970 boa parte da população branca não queria viver ao lado dos negros, e continuava a discriminá-los – por exemplo, quando eles procuravam um apartamento para morar.
O racismo estrutural também contribuía para que afro-americanos e latinos, em especial, fossem relegados aos bairros socialmente desfavorecidos e, de certa forma, abandonados a seus próprios meios para subsistirem. Os cofres da cidade estavam vazios. Muitos dos policiais eram corruptos e racistas.
Festa de adolescentes vira mito
"Na época, Nova York estava quase falida. Não havia realmente nada para os jovens fazerem", lembra Cindy Campbell num vídeo da casa de leilões Christie's, que em 2023 ofereceu objetos da época da fundação do hip-hop. Em 1973, ela cursava o ensino médio e resolveu fazer uma festa no início do ano escolar, de modo a juntar dinheiro para comprar roupas antes de começarem as aulas.
Os ingressos custavam 0,50 dólar para os meninos e 0,25 dólar para as meninas, segundo consta no panfleto que Cindy usou para convidar os amigos para sua "DJ Kool Herc Party".
Em 11 de agosto de 1973, DJ em questão – que era o irmão dela, Clive Campbell, de 18 anos – levou seu sistema de som até a sala de recreação de um prédio de apartamentos na avenida Sedgwick nº 1520, no Bronx: duas picapes, um mixer, um amplificador e um conjunto de alto-falantes.
Pouco depois, o ar estava impregnado do cheiro de maconha. Os graves ribombavam, animando o público que suava e dançava na sala escurecida. Coke La Rock, amigo do DJ Herc, pegou o microfone, saudou os amigos e começou a rimar. Isso acabaria lhe rendendo a reputação de ser o primeiro MC, mestre de cerimônias. Ele também conseguiu um bom dinheiro vendendo maconha na festa.
Em torno de 50 jovens e moradores do bairro estiveram no evento. Eles presenciaram a primeira festa de hip-hop da história, antes mesmo de os termos "hip-hop" ou "rap" sequer serem inventados.
As novas sonoridades do DJ Kool Herc
Um rapaz que colocava discos para tocar não era novidade, e rimar sobre uma música tampouco era algo revolucionário. O comediante americano Pigmeat Markham já havia lançado uma forma de canto ritmado em 1968, com o single Here domes the judge. A inovação era a técnica que o DJ Kool Herc utilizou para criar uma sonoridade que não se ouvia em nenhuma outra parte.
Ele usava só a parte instrumental de músicas, em que se ouvia o baixo e a bateria. Como esses breaks eram bastante curtos, o DJ Kool Herc simplesmente colocava a mesma faixa nas picapes e repetia esses trechos nas duas, alternadamente, aumentado sua duração.
Essa técnica, que ele chamou de merry-go-round (carrossel), criava um som novo e extremamente dançante. As meninas e meninos que dançavam a música criada através desses breaks eram chamados breakdancers.
Em seus shows, DJ Kool Herc mixava estilos musicais diferentes, mas mantinha em segredo os nomes dos discos com que trabalhava, para forçar quem quisesse ouvir sua música a ir às festas onde ele se apresentava.
A paixão pela música ele herdara de seu pai, um ávido colecionador de discos de jazz, gospel e country. DJ Herc se interessava por soul, mas também pela música disco moderna, e estava sempre à procura de sons com que pudesse criar uma batida – que é a base de uma boa faixa de hip-hop.
Festas cada vez maiores
A notícia sobre a música que saía como fogos de artifício das picapes do DJ Kool Herc se espalhou rapidamente pelo Bronx. Cada vez mais gente queria ir às festas, lembra Coke La Rock no documentário da Netflix Hip-Hop evolution.
Assassinos, ladrões, dançarinos e gente comum ia às block parties, as festas de quarteirão ao ar livre, instituídas quando a sala de recreação ficou pequena demais. Elas se tornaram comuns nos bairros nova-iorquinos nos anos 1970.
Os postes de luz costumavam ser a fonte de eletricidade clandestina para os sistemas de som. Para um DJ se destacar, era preciso chamar a atenção. e o DJ Kool Herc tinha as caixas de som maiores e mais barulhentas da vizinhança.
Mais do que só música
Desde o princípio, o hip-hop não era só um gênero musical, mas se viacomo uma forma de cultura que libera a criatividade, consistindo em cinco elementos: DJ, rap, breakdance, grafite e conhecimento. Os eventos do DJ Kool Herc reuniam tudo isso: mais um motivo por que a lendária festa da avenida Sedgwick é considerada o nascimento do hip-hop.
Quem quisesse ouvir hip-hop tinha que que ir às block parties, já que em meados da década de 1970 ainda não se vendiam discos do estilo, e as músicas não tocavam no rádio. Foi só em 1979 que a música Rapper's delight, do grupo Sugarhill Gang, se tornou a primeira faixa de hip-hop a entrar nas paradas americanas.
Hoje em dia, essa faixa é considerada um clássico, assim como The message, do grupo Grandmaster Flash & The Furious Five, surgido em 1982, que narra a vida nos guetos de Nova York.
"O hip-hop tem sido a voz dos sem voz, as histórias das comunidades marginalizadas, onde as pessoas podem contar sobre as desigualdades sociais nessas comunidades negras e pardas. Não só aqui na América, mas ao redor do mundo", afirma Rocky Bucano, diretor do Museu Universal do Hip-hop de Nova York, que será inaugurado em 2024.
Num vídeo da série História negra em dois minutos, a cineasta Ava DuVernay diz que o hip-hop é a "CNN da comunidade negra", por relatar poeticamente tudo o que os negros vivenciam na vida cotidiana, assim como os problemas sociais, comunitários e econômicos que enfrentam. Muitos dos rappers americanos que chegaram ao topo não vieram da classe média, mas sim, das regiões mais pobres onde o hip-hop surgiu.
Do nicho ao "mainstream"
O hip-hop é atualmente um dos gêneros musicais mais populares. A partir do nicho, aquilo que era somente uma subcultura chegou ao mainstream, gerando estrelas como Tupac, Notorious B.I.G., LL Cool J, Public Enemy, the Beastie Boys, Wu-Tang Clan, Ice Cube, Ice T, Timbaland, Jay-Z, Dr. Dre, Nas, Eminem, Nicki Minaj, Lil Wayne, Drake, Missy Elliott, Snoop Dogg e Kendrick Lamar – para citar alguns.
A partir dos Estados Unidos, a cultura hip-hop se espalhou pelo mundo, influenciando a moda, cinema, publicidade e arte. O gênero se tornou também uma área de estudo.
Na Alemanha, onde a cena hip-hop se desenvolveu com algum atraso em diferentes correntes, pode-se até votar nesse gênero musical. O Partido do Hip-hop já existe desde 2017, mas ainda não conseguiu eleger representantes para o parlamento federal.
Autor: Kristina Reymann-Schneider