Em um rápido telefonema, Kim Cheol Ok conseguiu informar à família sobre sua iminente deportação para a Coreia do Norte, em 9 de outubro.
Naquele dia, Cheol Ok e outros 500 norte-coreanos que viviam na China foram repatriados à força. A irmã mais velha dela, Kim Kyu Li, teme por sua vida.
"Tenho certeza de que ela está sendo torturada", disse à DW, de Londres, onde vive no exílio após escapar do desastre humanitário da fome de quatro anos na década de 90, que causou milhões de mortes.
Na Coreia do Norte, os prisioneiros geralmente morrem de fome ou de doenças causadas pela desnutrição. "Eles comem ratos e baratas e ficam doentes ", diz Kyu Li.
Da zona rural à prisao
Cheol Ok chegou à China com apenas 14 anos de idade e foi forçada a se casar com um homem 30 anos mais velho. Juntos, tiveram uma filha, que é cidadã chinesa.
Mesmo assim, Cheol Ok nunca recebeu permissão de residência na China e, por 25 anos, viveu isolada em uma área rural na província de Jilin, no nordeste da China. Ela trabalhou no campo e, mais tarde, em restaurantes. O marido a tratava bem apesar das circunstâncias, segundo a irmã Kyu Li.
A vida de Cheol Ok teve uma reviravolta no início deste ano. Em abril, ela foi presa pela polícia chinesa, supostamente durante uma tentativa de deixar o país. "Ela não fez nada. Seu único crime foi ter nascido na Coreia do Norte", diz Kyu Li.
Feridas abertas
A deportação de Cheol Ok para a Coreia do Norte fez doer feridas na família que nunca foram cicatrizadas.
Além de Kyu Li, uma outra irmã reside em Londres: Kim Yu Bin, que também já foi deportada da China para a Coreia do Norte, antes de conseguir escapar. A lembrança dos abusos e maus-tratos que sofreu a perseguem até hoje.
"Desde que minha irmã foi presa, tenho pesadelos terríveis", disse ela à DW.
Yu Bin conta que seu irmão morreu sob custódia norte-coreana, e os detalhes da morte angustiante foram reportados por outros presos que conseguiram escapar.
"Ele foi espancado até a morte, colocado em um saco de arroz e jogado fora", diz ela. "Isso partiu meu coração." O maior medo da família é que Cheol Ok possa ter o mesmo destino.
Outros casos semelhantes
A DW também conversou com outras e outros norte-coreanos que foram deportados da China para seu país de origem. Antes de conseguirem fugir para a Coreia do Sul, eles relatam o tratamento desumano que tiveram enquanto estavam detidos.
"Fomos tratados como se fôssemos menos que animais", disse Lee Young Joo, de 50 anos, em uma entrevista em vídeo de sua casa na Coreia do Sul.
Ela era espancada regularmente durante os interrogatórios.
"Se eu hesitasse por um segundo em responder às perguntas, eles já tinham preparado o cassetete para me torturar", diz ela. "Eu apanhava em todas as partes do corpo, inclusive na cabeça e no rosto."
"Criminosos políticos”
Mais de 1.000 relatos de testemunhas oculares foram coletados pela Korea Future, uma organização que documenta as violações dos direitos humanos no sistema penal norte-coreano.
Os norte-coreanos que conseguem escapar do país e são repatriados enfrentam interrogatórios brutais com o objetivo de esclarecer os motivos pelos quais eles deixaram o país.
Eles fugiram para escapar da pobreza ou estavam tentando chegar à Coreia do Sul? O regime considera essa última hipótese um crime especialmente hediondo, pois a Coreia do Sul é considerada sua arquiinimiga.
Pyongyang também persegue diplomatas que desertaram e hackers que já fizeram o seu trabalho na China, de acordo com informações obtidas pela DW.
"Os detidos, independentemente de serem classificados como criminosos econômicos ou políticos, sofrem tortura posicional. Isso significa que eles são forçados a se sentar com as pernas cruzadas por mais de 12 horas todos os dias. Qualquer movimento ou som pode resultar em punição individual ou coletiva", explica Yoo Suyeon, da Korea Future.
Pequim "finge que não vê"
Apesar dos crescentes relatos de tortura na Coreia do Norte, a China continua a deportar norte-coreanos para o país de origem.
"A China, na verdade, tem obrigações, tanto de acordo com a convenção e o protocolo sobre refugiados quanto com a convenção sobre tortura, de não enviar pessoas de volta a países onde enfrentarão tortura", diz o especialista em direito internacional Ethan Hee-Seok Shin, do Transitional Justice Working Group, que entrou com uma petição na ONU em nome de Cheol Ok.
No início deste ano, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos pediu à China, o aliado mais próximo de Pyongyang, que encerrasse suas repatriações forçadas de norte-coreanos, dizendo que isso poderia "colocá-los em risco de graves violações de direitos humanos, como detenção arbitrária, tortura, desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais".
Mas Pequim rejeitou as alegações, dizendo que "atualmente não há evidências de tortura ou das chamadas "violações maciças dos direitos humanos na Coreia do Norte".
Em vez disso, a China classifica os norte-coreanos como migrantes econômicos irregulares e não como refugiados, negando-lhes efetivamente a proteção da Convenção de Genebra sobre Refugiados.
A DW solicitou repetidamente esclarecimentos dos governos chinês e norte-coreano. A China não respondeu, enquanto a embaixada da Coreia do Norte em Berlim, em uma breve declaração por escrito, descartou as acusações relacionadas às deportações como "propaganda enganosa dos Estados Unidos e forças hostis".
Esperança e incerteza
As famílias dos detidos na Coreia do Norte geralmente optam por permanecer em silêncio, temendo expor seus entes queridos a perigos adicionais. Entretanto, Kim Kyu Li quis tornar pública a luta pela irmã desaparecida. Ela até viajou para Nova York para falar em uma recente reunião do Tribunal Penal Internacional.
Em seu apartamento em Londres, ela fala com a irmã desaparecida, mesmo sabendo que ela não pode ouví-la.
"Cheol Ok, seja forte e não desista".
É improvável que Kim Cheol Ok seja libertada da prisão, diz Ethan Hee-Seok Shin, cuja organização apoia a família.
"Mas pelo menos a esperança deles e a nossa é que esse tipo de atenção internacional torne mais difícil para as autoridades norte-coreanas abusarem dela ou torturá-la."
Autor: Nina Werkhäuser, Esther Felden