"Dá medo". É desta forma que Thomaz Bustamante, professor de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), avalia o novo entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a participação de magistrados da Corte em processos de escritórios que tenham a participação de seus familiares. A maioria foi formada por 7 votos a 4, na última segunda-feira (21/08).
O questionamento foi aberto pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) em uma situação específica: a possibilidade de juízes atuarem em casos de escritórios onde parentes ou familiares atuem. O impedimento, que era vedado pelo Código de Processo Civil, foi derrubado pela Corte. Mantém-se, no entanto, a proibição de magistrados atuarem em casos diretos cujo advogado seja familiar.
"A legislação que foi parcialmente revogada pela decisão é claríssima e coloca como causa de impedimento qualquer processo de um cliente de escritório, cônjuge ou parente direto. Isso é uma condição que deveria ser tratada de maneira objetiva", afirmou Bustamante.
Apesar de entender que a regra tem sido burlada em algumas situações, Bustamante acredita que a invalidação do artigo por completo agrava ainda mais o problema. "Esse tipo de interação entre juízes e advogados já causaram escândalo. E não consigo imaginar que tipo de interação ou influência recíproca quando estamos falando de membros da mesma família.”
DW Brasil: O STF formou maioria para mudar as regras na atuação de processos de escritórios de parentes. Como avalia a mudança?
Thomas Bustamante: Essa decisão é um retrocesso e revela uma espécie de incompreensão que os juízes têm no Brasil, principalmente nos tribunais superiores, acerca do próprio papel e das condições necessárias para o exercício da jurisdição. A legislação que foi parcialmente revogada pela decisão é claríssima e coloca como causa de impedimento qualquer processo de um cliente de escritório, cônjuge ou parente direto. Isso é uma condição que deveria ser tratada de maneira objetiva. É uma questão que está longe de ser despropositada ou injusta na legislação. É bastante temeroso, porque isso vai criar ainda mais obscuridade e dúvidas sobre a atuação do judiciário
A decisão não poderá se voltar contra os próprios juízes, que ficarão mais expostos caso estejam envolvidos em julgamentos de pessoas próximas?
Acho que não. Hoje, o judiciário brasileiro entende que as regras de impedimento são aplicadas nesse quesito. O meu medo é justamente o contrário: normalizar situações que não podem ser normalizadas. Ainda que o judiciário brasileiro tenha sido vacilante em alguns casos de aplicação dessa norma, há uma vigilância da sociedade sobre esse tema. Essa norma foi capaz, em situações anteriores, inclusive no Supremo, de causar constrangimento nos juízes. E agora nem isso ela será capaz de fazer a partir desse novo entendimento adotado pela corte.
Como a questão tem sido tratada hoje por escritórios de advocacia? Há como "burlar” essa proibição e influenciar a presença de magistrados em determinados processos?
Uma das coisas que se argumentava em favor da norma é que os escritórios de advocacia poderiam, por exemplo, contratar um advogado filho de um desembargador ou ministro do Supremo para alterar a competência e influenciar presença desse magistrado no julgamento. Agora, esse tipo de situação me parece muito menos grave do que a suspeita que se lança na hipótese de um advogado que vende seus serviços com o sobrenome do ministro do Supremo para influenciar a distribuição desse ou daquele processo. Existe uma conduta ética que deve ser seguida. Não permitir a suspeição pode gerar um problema tão grave quanto esse.
Um dos argumentos apresentados pela Associação dos Magistrados Brasileiros, autora da ADI, é de que a regra de impedimento não pode ser aplicada unilateralmente pelos juízes, que podem incorrer em erros sem saber. O argumento é válido?
O argumento é horroroso. Primeiro, essa regra pode sim ser aplicada de ofício [quando há uma decisão do magistrado em razão do cargo ocupado, sem a necessidade de iniciativa ou participação de terceiros]. Segundo: bastaria alguém alegar impedimento que o juiz estaria obrigado a se declarar impedido. Ele poderia tratar com naturalidade a situação e isso não cria um ônus especial ao magistrado. E se ele está atuando de boa-fé, sem saber do envolvimento proibitivo com uma das partes do processo, isso não deveria ser relevante em uma argumentação como essa da AMB, até porque o impedimento se caracteriza como um dado objetivo, não por uma questão psicológica ou sentimental do juiz. Isso não interessa. O que vale é a legislação.
Historicamente, como o STF lida com pedidos de suspeição envolvendo os magistrados?
Quando o assunto é o impedimento da própria corte, nós tivemos situações em que a regra pode gerar bastante constrangimento para os próprios juízes: ou seja advogado de escritórios com parentes de ministros do Supremo. O caso de suspeição mais importante foi o da Lava Jato, com o presidente Lula, quando se viu como foi importante esse instituto jurídico. Ainda que não seja um caso de parentesco, mas o fato de você ter relações pessoais e conversas sobre o processo foi suficiente para demonstrar a suspeição. Esse tipo de interação entre juízes e advogados já causaram escândalo. E não consigo imaginar que tipo de interação ou influência recíproca quando estamos falando de membros da mesma família. Dá medo. E tenho receio também do fundamento que foi evocado. A lei é clara, cujo sentido literal é muito difícil de ser discutida e que foi questionada com o "princípio da proporcionalidade”, que no direito brasileiro são praticamente vazios de conteúdo e que tem sido aplicado com subjetivismos desvairados e perigosos.
Autor: Guilherme Henrique