Depois de uma temporada de superaquecimento, as águas do oceano Pacifico dão sinais de que vão ficar mais geladas que o normal. Quase sem interrupção, o fenômeno El Niño será substituído por seu oposto, La Niña, após uma temporada de temperaturas recordes e eventos extremos em todo o Brasil.
A sucessão dos fenômenos não é comum e precisa ser acompanhada conforme se desenvolve, afirma Marcelo Seluchi, coordenador geral do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden).
"O planeta como um todo fica mais quente em anos em de El Niño. 2023 foi o mais quente da história conhecida. É preciso aguardar um pouco ainda para ver como será 2024 com o La Niña se formando”, comenta Seluchi em entrevista à DW.
A previsão inicial é que a influência do La Niña, a partir de junho, causará chuvas acima da média em parte da região Norte, Minas Gerais e Bahia. Na região Sul, que registrou enchentes recordes em algumas localidades influenciado pelo El Niño, as chuvas agora devem ficar abaixo da média.
"É quase como um alívio para o Sul, que sofreu com sistemas ciclônicos de baixa pressão atuando na costa. Mas se o La Niña persiste muito tempo, pode ficar muito seco e a região voltar a ter problemas com impactos negativos na parte agrícola e na reserva de água”, analisa Tércio Ambrizzi, pesquisador do no Instituto de Energia e Ambiente (IEE), da Universidade de São Paulo, USP.
Antes de o último El Niño se consolidar, em maio de 2023, o fenômeno oposto estava ativo e persistiu por três anos (2020-2023) – duração considerada rara. O período foi marcado por estiagem que levou a quebra de lavouras e causou a maior crise hídrica dos últimos 78 anos na bacia do Paraná-Prata, que abastece reservatórios vitais para a geração de energia hidrelétrica.
El Niño deixa rastro no agronegócio
No Rio Grande do Sul, o caos climático dos últimos meses é percebido como um dos mais complexos já vividos pelos produtores rurais.
"O excesso de chuva, diferença de luminosidade para fotossíntese e na polinização, o aparecimento de doenças que não eram tradicionais prejudicou muito a safra do milho”, detalha Alencar Rugeri, técnico no estado da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater).
Por conta dos efeitos do El Niño, o plantio da soja, tradicionalmente iniciado em outubro, foi atrasado para dezembro. Isso compromete todo o planejamento e coloca o produtor numa zona de desconforto, pontua o técnico do Emater.
"Os reflexos sobre a soja ainda não podem ser mensurados. É um período frágil, vulnerável, numa corrida que dura cerca de 130 dias. Essa mudança aumenta o risco de outras coisas, há uma pressão mais forte de doenças, como ferrugem”, detalha Rugeri à DW.
Em todo o país, a previsão da safra nacional de grãos é de queda de 4,7% em relação ao colhido em 2023, prevê o Levantamento Sistemático da Produção Agrícola divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O total agora deve ser de 300,7 milhões de toneladas em 2024 - no ano anterior foram 315,4 milhões de toneladas.
Seca onde já está seco
A época das chuvas chega ao fim com seca em boa parte da região Sudeste e Centro-Oeste, alerta Seluchi, do Cemaden.
"Em março, quando a estação chuvosa está fechando, espera-se a recuperação dos rios, solo carregado com umidade. Mas isso não aconteceu em várias regiões e abre preocupação porque, com o La Niña, a situação não vai melhorar onde já está seco”, explica o meteorologista à DW.
No Pantanal, a situação já é preocupante. Rios importantes da bacia do Paraguai, que engloba o bioma em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, estão abaixo do esperado para esta época do ano. Segundo dados do Serviço Geológico do Brasil (SGB), o déficit de chuvas lembra o cenário observado nos anos mais críticos de secas. Em 2020, o Pantanal enfrentou uma estiagem severa e registrou incêndios recordes.
Na bacia do rio Paraná o panorama também gera tensão. "Caso a estação chuvosa 2023-2024 finalize com chuvas abaixo da média e a La Niña venha se configurar, não é muito favorável para os reservatórios das usinas hidrelétricas devido à atual condição de seca hidrológica”, afirma a nota técnica do Cemaden.
A crise hídrica desta bacia entre 2020 e 2023 obrigou a paralisação de algumas turbinas nas usinas e impulsionou o acionamento das termelétricas, que são mais poluentes e mais caras.
Aquecimento continua
Toda vez que a temperatura superficial do Pacífico Equatorial está 0,5°C abaixo que a média histórica, o fenômeno é classificado como La Niña. Quando a mesma variação é para cima, o El Niño se desenvolve.
O resfriamento momentâneo no Pacífico previsto para entrar em ação na segunda metade do ano não muda a tendência de aquecimento do planeta, ressalta José Marengo, climatologista que coordena a pesquisa e desenvolvimento no Cemaden.
"São duas coisas diferentes. Quando falamos do aquecimento global, é um processo de longo prazo. La Niña é uma variabilidade climática, curta, que dura cerca de um ano”, diz Marengo à DW.
Durante a última temporada do fenômeno, provocado pelo resfriamento do Pacifico Equatorial, a temperatura média da Terra continuou subindo, mas em ritmo menor. No fim de 2023, a Organização Meteorológica Mundial divulgou que o termômetro médio da Terra marcou naquele ano 1,45°C acima dos níveis pré-industriais (1850-1900).
"Não vamos passar por um resfriamento global com o La Niña. Teremos um pequeno alívio nestas ondas de calor. Com o La Niña, não sabemos se o aquecimento vai continuar nos outros oceanos, como aconteceu com Atlântico e Índico nesse El Niño. Podemos aguardar uma pequena atenuação, mas o mundo continua aquecendo”, afirma Marengo.
Autor: Nádia Pontes