São falsas as afirmações de médico sobre estudo da Universidade de Cambridge ter descoberto que 25% das pessoas que receberam vacina de mRNA contra a covid-19 estão com “VAids”. Esse tipo de imunizante, baseado no RNA mensageiro, simula a exposição ao novo coronavírus para poder combatê-lo, como explica o Ministério da Saúde. Já a Aids (da sigla em inglês para Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) é a doença causada pela infecção do vírus da imunodeficiência humana (HIV é a sigla em inglês). Diferentemente do que diz o autor do post, não existe uma condição chamada VAids, que seria uma “síndrome de imunodeficiência adquirida por vacina”, nem os imunizantes causam a doença.
“Esse tipo de fake news é um crime contra a saúde pública”, afirma o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Renato Kfouri. Ele disse ao Comprova que o vírus HIV é transmitido de diferentes formas, especialmente pelo contato sexual desprotegido, mas não por meio de um imunizante. Na página dedicada à doença, o Ministério da Saúde elenca as principais formas de transmissão, além do sexo sem camisinha: uso de seringa por mais de uma pessoa; transfusão de sangue contaminado; da mãe infectada para seu filho durante a gravidez, no parto e na amamentação; e por instrumentos não esterilizados que furam ou cortam.
Em consulta à Classificação Internacional de Doenças (CID-11), da Organização Mundial da Saúde (OMS), a busca pelo termo “VAids” não traz nenhum resultado.
Contatado pelo Comprova, o Ministério da Saúde afirmou que “nenhuma vacina possui a capacidade de causar a Aids” e que os imunizantes salvam vidas.
O autor do post cita como fonte de suas afirmações o site Slay News, que leva para uma reportagem do jornal britânico The Daily Telegraph. O texto não fala que o estudo concluiu que 25% das pessoas vacinadas com os imunizantes de mRNA desenvolveram Aids ou outras doenças, apenas que tiveram uma resposta imunológica não intencional.
Tampouco a reportagem revela o nome do estudo, mas informações nele citadas levam ao artigo publicado na revista Nature. A pesquisa também não diz que as vacinas levaram as pessoas a ter Aids. O estudo foi realizado por pesquisadores da Universidade de Cambridge. Segundo texto no site da instituição, o artigo identificou que pode ocorrer uma falha na “leitura”, pelas células humanas, do mRNA da vacina, o que resultaria numa resposta imunológica não intencional, situação constatada em um terço de 21 pacientes do estudo que receberam o imunizante. No entanto, nenhum efeito nocivo no organismo dessas pessoas foi detectado.
O autor do post, que foi procurado pela reportagem e não respondeu até a publicação deste texto, já teve outros conteúdos relacionados à vacina contra a covid verificados
Falso, para o Comprova, é todo conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. O post foi removido em 5 de março, mas, até sair do ar, alcançou mais de 3,5 mil curtidas.
Como verificamos: Para obter informações sobre a vacina e a Aids, pesquisamos sites de órgãos como a OMS e o Ministério da Saúde, que foi contatado pela reportagem. Também consultamos o estudo usado como base da afirmação mentirosa, textos no site da Universidade de Cambridge que repercutem a pesquisa e tentamos contato com os autores da pesquisa, que não responderam até a publicação desse texto. Contatamos representante da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), o presidente da Sociedade Paulista de Infectologia, Carlos Magno Fortaleza, e questionamos o responsável pela postagem enganosa, que não respondeu até o fechamento desta verificação.
A tecnologia das vacinas de mRNA
As vacinas de RNA mensageiro levam, de uma forma controlada, uma mensagem para as células humanas criarem a proteína spike para que, a partir disso, o organismo possa gerar uma resposta imunológica a ela. A proteína spike é um fragmento do vírus Sars-CoV-2, causador da covid-19, por meio da qual o vírus entra nas células humanas, causando a doença.
“A vacina existe para você encontrar com o vírus de forma controlada, sem ter a doença, antes que o vírus entre em contato com você”, explicou o virologista Amilcar Tanuri, coordenador do Laboratório de Virologia Molecular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em checagem recente do Estadão Verifica.
Ao Comprova, o presidente da Sociedade Paulista de Infectologia, Carlos Magno Fortaleza, explicou que o estudo aponta para uma nova perspectiva desse tipo de vacina. “Os cientistas estão vendo que, além dessas proteínas que são próprias do vírus, o RNA contido na vacina tem criado outras proteínas. A partir daí, há uma imunidade contra essas outras proteínas, que não são do vírus e não eram desejadas. Não é indesejado no sentido negativo, apenas não eram esperadas”, disse.
Segundo o infectologista, o próprio artigo deixa claro que a produção de outras proteínas não causa nenhum efeito colateral. “Isso não tem a ver com a Aids, é uma questão muito técnica. Não é nada absurdo”, afirmou. “Tem a ver, talvez, com melhorar [o modelo da vacina] para que seja produzida só a spike mesmo, e, então, a imunidade será apenas contra o coronavírus”, avaliou. O médico relembrou que informações falsas sobre uma suposta ligação entre Aids e vacinas já foram foram removidas por decisões judiciais.
Estudo aponta ajuste para as vacinas, mas não danos no organismo
O estudo “N1-methylpseudouridylation of mRNA causes +1 ribosomal frameshifting”, publicado na Nature em 6 de dezembro de 2023, e que foi distorcido na postagem falsa, foi realizado pelos pesquisadores Anne Willis e James Thaventhiran, do Medical Research Council (MRC) Toxicology Unit, da Universidade de Cambridge, com a colaboração de outros estudiosos das universidades de Kent, Oxford e Liverpool.
Segundo o site da instituição, o estudo descreve como as vacinas de mRNA podem causar uma resposta imunológica não intencional e aponta ajuste no desenvolvimento de futuros imunizantes com essa tecnologia que, de acordo com o site da Universidade de Cambridge, se trata de uma descoberta revolucionária, “que foi utilizada para controlar a pandemia da covid-19 e está sendo proposta para tratar vários tipos de cânceres e doenças cardiovasculares, respiratórias e imunológicas”.
Segundo o texto no site da universidade, os pesquisadores descobriram que o mRNA das vacinas pode ser decodificado de forma errada pelas células humanas resultando, além da produção da proteína spike, na produção de outras proteínas capazes de gerar uma “resposta imunológica não intencional” no organismo. Na pesquisa, que envolveu testes em laboratório com camundongos e análise de pessoas vacinadas, eles mostraram que essa falha ocorreu em um terço de 21 pacientes do estudo que receberam a vacina. Porém, nenhum efeito nocivo no organismo foi encontrado.
Os pesquisadores identificaram que um componente químico do mRNA utilizado na vacina, chamado N1-metilpseudouridina, é o causador da falha. Eles, então, redesenharam as sequências genéticas do mRNA sintético para evitar o efeito indesejado. Segundo a universidade, essa modificação pode facilmente ser aplicada a futuras vacinas de mRNA, “evitando respostas imunológicas perigosas e não intencionais”.
Pesquisadores reafirmam segurança da vacina e dizem que alegações são falsas
O texto no site da universidade destaca a seguinte declaração do imunologista James Thaventhiran, um dos responsáveis pelo estudo: “A pesquisa mostrou, sem sombra de dúvida, que a vacinação com mRNA contra a covid-19 é segura. Bilhões de doses das vacinas de mRNA da Moderna e da Pfizer foram entregues com segurança, salvando vidas em todo o mundo. Precisamos garantir que as vacinas de mRNA do futuro sejam igualmente confiáveis. Nossa demonstração de mRNAs ‘resistentes ao deslizamento’ [erro na decodificação pelas células humanas] é uma contribuição vital para a segurança futura desta plataforma médica.”
No mesmo texto, a bioquímica Anne Willis, outra responsável pelo estudo, também reafirma a segurança das vacinas de mRNA contra a covid-19 e destaca que o ajuste que identificaram pode ser facilmente implementado na produção futura de novos imunizantes com essa tecnologia: “O nosso trabalho apresenta uma preocupação e uma solução para este novo tipo de medicina. Estas descobertas podem ser implementadas rapidamente para evitar quaisquer problemas de segurança futuros e garantir que as novas terapias de mRNA sejam tão seguras e eficazes como as vacinas contra a covid-19.”
A equipe de checagem da AFP em Hong Kong checou a mesma alegação e também atestou que ela é falsa. À AFP, os pesquisadores envolvidos no estudo disseram que as afirmações de que a vacina com mRNA provocou Aids nos imunizados foram simplesmente inventadas. “Nosso último estudo não questiona a avaliação de segurança das vacinas de mRNA da covid existentes. Os dados são claros: não há evidências que liguem proteínas involuntárias a respostas imunológicas prejudiciais”, disse James Thaventhiran, acrescentando que “os humanos encontram regularmente proteínas involuntárias e geram respostas imunológicas inofensivas”.
Também à AFP, Lance Turtle, coautor do estudo e pesquisador da Universidade de Liverpool, disse que a alegação compartilhada nas redes não tem base em fatos. “Não havia absolutamente nada sobre imunodeficiência em nosso estudo… Não há nada de imunodeficiência nisso, é o sistema imunológico respondendo a uma proteína estranha”, disse Turtle.
Autor do post tem histórico de desinformação
O médico José Augusto Nasser dos Santos é natural de Campo Grande (MS), mas atua na cidade do Rio de Janeiro desde a década de 1990, em um consultório no Leblon. Especializado em neurocirurgia, ele é autor de um curso de “detox de vacinas da covid-19” com a administração de ivermectina, vitaminas e chás; nenhum desses itens é aprovado pelo Ministério da Saúde para o tratamento da doença. As aulas são oferecidas em mensagens automáticas enviadas pelo WhatsApp comercial do médico, assim como fornecimento de atestados para não receber a vacina.
Nasser também é autor do vídeo que foi compartilhado por Luciano Hang no X (antigo Twitter), resultando no bloqueio do perfil do empresário da rede social, em janeiro de 2022. Na gravação, o médico se posicionou de forma contrária à vacinação infantil com informações enganosas sobre o imunizante, alegando que se tratavam de um “experimento”, sem benefícios comprovados. Naquele mês, ele se utilizou do mesmo discurso em uma audiência pública realizada na Câmara dos Deputados a convite da deputada Bia Kicis (PSL-DF).
No Senado, o neurologista protagonizou mais uma sessão polêmica, comandada pelo senador Eduardo Girão (Novo-CE), em que criticava a necessidade do comprovante de vacinação para diversos serviços. Na ocasião, o médico sugeriu, de forma irônica, que houvesse também a proibição de pacientes com Aids, tuberculose e hepatite C em estabelecimentos comerciais.
Em outro momento, Nasser foi alvo de uma verificação do Projeto Comprova em que ficou constatado que o médico deturpou dados de uma pesquisa para disseminar informações enganosas de que a vacinação contra a Covid-19 teria resultado em abortos.
O que diz o responsável pela publicação: Ao Comprova, Nasser negou que o termo VAids tenha relação com a Aids. “São duas coisas muito diferentes”, afirmou. Porém, a expressão surgiu na pandemia, entre pessoas anti-vacina, sempre associada à Aids. Inclusive, como informado acima, ele mesmo já comparou a forma de transmissão da covid-19 com a do vírus HIV e não há na ciência uma condição chamada de VAids.
O que podemos aprender com esta verificação: É comum que os desinformadores divulguem conteúdos com tom alarmista, como este verificado aqui. Milhares de pessoas no mundo se imunizaram contra a covid-19 com as vacinas da Moderna e da Pfizer e, ao ler o post, algumas pessoas podem se assustar e achar que poderiam estar com Aids por conta do produto. Os desinformadores sabem que, ao causar a sensação de espanto ou surpresa, a pessoa impactada pode não refletir direito, ter o julgamento influenciado por aquele conteúdo. E já é mais do que sabido que as vacinas, tanto as de mRNA como as outras, são eficazes contra o novo coronavírus, então, ao se deparar com posts que associam os imunizantes a doenças, desconfie. Se achar que pode ser verdadeiro, tente encontrar o estudo citado ou o assunto publicado em outros locais. Ou, se, de fato, 25% dos vacinados estivessem com Aids, você acha que isso não mereceria atenção de autoridades, cientistas e veículos jornalísticos?
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: O Aos Fatos checou o mesmo conteúdo verificado aqui e posts associando as vacinas contra a covid-19 à Aids já foram classificados com falsos ou enganosos diversas vezes pelo Comprova. Alguns exemplos: é falso que vacina australiana tenha infectado pessoas com HIV; imunizante é seguro e não gera HIV, câncer ou HPV; e é falso que o Canadá tenha admitido que triplamente vacinados contra tenham desenvolvido Aids. A equipe também publicou, na seção Comprova Explica, que o imunizante não provoca Aids, ao contrário do que sugeriu Bolsonaro em live.