Esse é um texto que eu ensaiei escrever algumas vezes. A vontade ficou latente quando estourou um caso de racismo em uma escola de classe média alta de São Paulo. O caso ganhou especial repercussão pois a vítima era filha de uma atriz brasileira. E, mesmo assim, a questão central foi menos sobre os cuidados que a menina discriminada deveria receber e mais sobre o que fazer com as jovens que cometeram o ato racista.
Não há dúvidas que é fundamental questionar e balizar como o papel educativo e pedagógico de uma escola deve funcionar em situações como essa. Mas é também de um racismo atroz constatar que, no frigir dos ovos, o debate público passou da saúde mental e emocional da menina negra para ficar totalmente centrado na intensidade da sanção que as meninas brancas deveriam (ou não) receber.
Poucos meses depois, um jovem negro estudante de outra escola da elite paulista cometeu suicídio por não ter conseguido suportar os inúmeros bullyings que sofria por ser quem era: um menino negro, homossexual e pobre, que havia entrado na escola por conta de ações afirmativas. Ao invés dessa tragédia ajudar a fomentar um debate mais aprofundado sobre saúde mental na adolescência, e suas interseções de raça, classe e sexualidade, o que vimos foi o silêncio costumaz da escola – que, na época, sequer fez um pronunciamento digno – e a oportunidade espúria para criticar as políticas de ação afirmativa, mais especificamente as cotas raciais. O recado dado por importantes representantes da elite paulistana foi: o apartheid racial, social e econômico da cidade mais rica do Brasil deve ser mantido.
Mas foi agora, quando minha filha chegou com queixas da escola, que resolvi escrever. Isso porque há algumas semanas me vi obrigada a sentar com uma menina de 7 anos – que há pouquíssimo tempo começou a questionar a existência de Papai Noel – e explicar que, sim, ela foi vítima de racismo. Em meio à violência da qual o racismo se alimenta, eu tive que explicar para ela que o cabelo dela não é feio, e que ela não foi a primeira (e infelizmente, não será a última) criança a ser zombada por seus colegas por conta do seu cabelo.
Confesso que, apesar de achar que conheço relativamente bem o modo como o racismo se expressa, não esperava que ela passasse por essa situação. Como o cabelo dela é muito menos crespo que o meu, acreditei que ela estaria a salvo dessa discriminação.
Inocência a minha.
Regra de história longa
Num universo marcado por crianças brancas de cabelos lisos ou anelados, o cabelo da minha filha é suficientemente crespo para ser alvo de racismo. Então, para tentar apaziguar o choro e a indignação dela, falei justamente isso: "você não é a primeira menina negra a viver isso". Eu mesma passei pela mesma situação, exatamente na mesma idade e num contexto muito semelhante: ser uma das poucas alunas negras numa escola branca da classe média alta e progressista. E para ela entender o que aconteceu e acontece com outras muitas meninas (e meninos) negras, peguei um pacote de bombril e disse: "era isso que diziam que meu cabelo parecia".
Obviamente eu fiquei muito tocada e afetada pela repetição das nossas histórias, a minha e da minha filha. E cheguei a ensaiar um texto para os pais da escola, porque não considero justo que a bomba do racismo estoure apenas no meu colo. Afinal de contas, se a minha filha está sofrendo esse tipo de racismo, é porque crianças estão sendo racista com ela. Só que o problema é que esse cenário descrito não é exceção, mas a regra. E uma regra de história longa.
Grande desafio
Essa situação me fez lembrar do início do livro Almas da Gente Negra, no qual um dos mais proeminentes sociólogos do mundo, o estadunidense W.E.B Du Bois, conta que foi na infância, interagindo com crianças brancas, que ele foi apresentado ao racismo. Uma situação que atravessou o século 19, o século 20 e chegou ao 21, como bem demonstra um vídeo feito pelo Criança Esperança, no qual, em meio a uma dinâmica, meninas e meninos negros são "convidados" a dizer frases abertamente racistas. Eles recusam o convite não só por acharem as frases erradas, mas também porque aquelas frases os faziam lembrar de situações racistas que passaram junto a seus pares, crianças brancas.
Esse é um ponto sobre o qual devemos falar: crianças podem sim ser racistas. E isso pode acontecer independentemente da consciência racial dos pais dessa criança. E, embora o racismo não esteja inserido no código genético de ninguém, ele é ensinado e aprendido desde a mais tenra infância. Como sabemos, as crianças são excelentes observadoras e absorvem conhecimento de uma maneira invejável. Então, se elas vivem num mundo racista (e sim, todos nós vivemos), o racismo será algo que elas vão aprender.
Geralmente o primeiro passo dessa aprendizagem começa com um estranhamento das desigualdades (algo bonito de ver): "por que só vejo famílias negras pedindo dinheiro nas ruas? ", ou "por que na minha escola tem poucos negros?", "como é que deixaram a escravidão existir?". Essas são frases que alguns dos meus amigos brancos já tiveram que responder para seus filhos e filhas.
No entanto, mesmo com as respostas que reforcem que "somos todos iguais e devemos ser tratados da mesma forma" não é isso que o mundo informa às nossas crianças. E, aos poucos, a diferença vai sendo naturalizada como desigualdade, e o racismo vai turvando nosso olhar.
Tudo isso para dizer aos pais e mães de crianças brancas que vocês têm um desafio enorme nas mãos. E por mais que esse seja mais um trabalho dentro das inúmeras tarefas da maternidade/paternidade, não se furtem, porque ele valerá à pena. Também cabe a vocês a construção de uma sociedade menos racista. E isso pode começar com seus filhos e filhas.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.
Autor: Ynaê Lopes dos Santos