A paisagem árida da costa não condiz com a realidade: sob um céu nublado, há um caixote com uma árvore sem folhas saindo dele. No chão, há um corpo semelhante a um cavalo morto. Três relógios de bolso derretidos estão pendurados como toalhas molhadas, e um quarto é povoado por formigas.
Com sua tela A persistência da memória, de 1931, Salvador Dalí (1904-1989) criou uma verdadeira paisagem de sonhos, riquíssima em simbolismos. Esse é o quadro mais famoso do pintor espanhol e, até hoje, continua sendo um dos ícones do surrealismo.
Uma nova realidade para além do zeitgeist burguês
Para entender o surrealismo, é preciso voltar à Paris dos chamados "loucos anos 20": após os horrores da Primeira Guerra Mundial, as pessoas estavam famintas por viver novamente. Inquietas e otimistas, queriam experimentar. Em 1924, os Jogos Olímpicos agitaram a cidade. Junto com os atletas, numerosos artistas, escritores, músicos e intelectuais se reuniram na capital francesa, tornando-a o centro cultural da Europa. Mas também havia quem não queria mais tolerar uma sociedade que tinha tornado possível uma guerra tão bárbara. E exigia uma reformulação radical.
Formou-se então um movimento contracultural político e artístico: quer pintores, cineastas, escritores ou músicos, os seguidores do novo movimento rejeitavam o zeitgeist burguês.
Os surrealistas buscavam – fora da lógica e da racionalidade – uma realidade nova e superior: a surrealidade, ou seja, o inconsciente. Sonhos, estados de embriaguez, desejos reprimidos, visões, ideias loucas: tudo isso era necessário para libertar a sociedade de suas algemas morais. Inspirados por A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud, eles pretendiam "rasgar o véu da realidade".
Um dos pioneiros do movimento foi o escritor e crítico francês André Breton, que, em outubro de 1924, escreveu o primeiro manifesto surrealista, no qual apresentou a novidade na arte: "Acredito agora na resolução desses estados aparentemente contraditórios de sonho e realidade num tipo de realidade absoluta, se é que podemos chamá-la assim: surrealidade."
O novo conceito foi considerado provocador, quase anarquista, por diversos contemporâneos que seguiam o conceito tradicional de arte da época.Ao mesmo tempo, muitos artistas se sentiram inspirados pela nova mentalidade.
De cachimbos e globos oculares
Há obras como A traição das imagens, do belga René Magritte (1898-1967): a pintura mostra um cachimbo, abaixo do qual está a declaração "Ceci n'est pas une pipe" (Isso não é um cachimbo). Soa enigmático, mas, na verdade, está correto, afinal, não se está olhando para um cachimbo, e sim para a representação de um cachimbo.
Com o filme Um cão andaluz, em 1929, dois espanhóis, o diretor Luis Buñuel e seu amigo Salvador Dalí, levaram pela primeira vez uma obra surrealista para a tela do cinema.
O enredo se baseia em sonhos de ambos: no prólogo, um homem afia uma navalha, e, em seguida, uma nuvem atravessa a Lua cheia. A seguir, numa elipse chocante, o homem corta o globo ocular de uma mulher com a navalha. Nada no filme deve ser racional, lógico ou culturalmente explicável: até mesmo o título foi escolhido sem referência ao conteúdo.
A rebelião dos surrealistas
O pintor alemão Max Ernst (1891-1976) foi um dos primeiros surrealistas. Ele desenhava paisagens fantasiosas espetaculares povoadas por figuras imaginárias. Para isso, desenvolveu técnicas como a frottage, na qual transferia a estrutura da superfície dos materiais para o papel. Sua técnica de gotejamento foi mais tarde desenvolvida por Jackson Pollock, pioneiro do expressionismo abstrato americano.
Em muitas pinturas surrealistas, os opostos colidem. A xícara de chá coberta de pele da artista berlinense Meret Oppenheim (1913-1985), por exemplo, ficou famosa. Perspectivas distorcidas, criaturas misteriosas: os artistas geralmente separam as coisas do contexto habitual, combinam com novas formas e, assim, propiciam uma visão distinta do mundo. Algumas imagens são perturbadoras, como o emocional autorretrato de Frida Kahlo (1907-1954) Hospital Henry Ford, de 1932, que mostra a mexicana numa cama voadora após um aborto espontâneo.
Poeta da cor, o catalão Joan Miró (1893-1983) também deve ser incluído no círculo dos surrealistas. Cabe citar o bretão Yves Tanguy (1900-1955), cujas paisagens oníricas permanecem enigmáticas: e o pintor franco-alemão Jean Arp (1886-1966).
Por sua vez, o fotógrafo, diretor de cinema, pintor e artista americano Man Ray (1890-1976)fez manchetes ainda em 2022, quando uma de suas obras mais conhecidas foi arrematada num leilão da Christie's por 12,4 milhões de dólares, tornando-se a fotografia mais cara de todos os tempos. Trata-se de O violino de Ingres, de 1924, que dá ao corpo de uma mulher nua a forma de instrumento musical.
O escritor e poeta André Breton foi um dos primeiros a empregarem a écriture automatique, método de escrita intuitiva visando colocar no papel imagens, sentimentos e palavras do subconsciente – uma associação livre a uma nova forma de poesia e literatura experimental. Breton descreveu o processo como "ditado mental sem nenhum controle da razão". A receita é sentar-se à escrivaninha logo após acordar, quase dormindo, e ir registrando as frases nascidas nesse estado de torpor.
Exposições em todo o mundo
Os surrealistas se rebelaram contra normas e hábitos. Eles pintavam, escreviam e filmavam contra a lógica e o pragmatismo – e a favor da equidade. Queriam usar a arte para instigar uma revolução social. Mas, acima de tudo, revolucionaram a percepção humana, que atualmente enfrenta um novo ponto de inflexão: a inteligência artificial e a aprendizagem de máquina permitem um entrelaçamento entre real e virtual quase impossível de compreender.
Não é possível dizer exatamente quando o surrealismo começou a encerrar seu ciclo, mas isso provavelmente coincidiu com o surgimento de novos movimentos artísticos após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, como o expressionismo abstrato nos EUA.
Hoje, quem busca reexaminar os surrealistas deve fazer uma peregrinação aos locais onde os artistas atuavam. O Centre Pompidou, em Paris, estende o tapete vermelho para eles com uma exposição que ficará em cartaz até janeiro de 2025 e depois percorrerá a Europa. O Kunsthalle de Hamburgo, o Lenbachhaus de Munique e muitos outros museus por todo o mundo completarão a ciranda de exposições em homenagem ao centenário do surrealismo.
Autor: Stefan Dege