Ela era uma jovem que, com apenas 16 anos, se destacava na vida boêmia e intelectual do Rio de Janeiro de 1914: Eugênia Brandão (1898-1948) circulava usando terno e gravata, chapéu de feltro e fumando cigarrilhas.
Foi assim que ela se apresentou à redação do jornal A Rua, sendo contratada como jornalista e, em 15 de maio de 1914, estreando como repórter — ou, segundo o neologismo cunhado pelo periódico à época, "reportisa".
Nascida em Juiz de Fora, ela havia se mudado para o Rio aos 12 anos com a mãe, viúva. Aos 15 começou a trabalhar: primeiro como vendedora em loja de roupas, depois como atendente em livraria. Ali tomou gosto pela literatura e pela escrita, tornando-se ela própria uma autodidata devoradora de obras clássicas.
O ingresso em uma redação, com a missão de reportar, era adentrar em um mundo então masculino. E Brandão o fez com um bom texto e ousadia. "Foi uma mulher à frente do seu tempo. Sua trajetória como jornalista foi referência para as gerações posteriores de mulheres que vieram a ser jornalistas também, principalmente em um tempo em que a profissão era essencialmente masculina", destaca a jornalista Maria Elisabete Antonioli, professora e coordenadora do curso de jornalismo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
"Foi repórter e editora e, com um perfil ousado, se destacou também no jornalismo investigativo. Teve um papel preponderante na defesa da liberdade de imprensa e com frequência participava de debates sobre política, proteção dos direitos dos jornalistas e acesso à informação", ressalta Antonioli.
Presidente da Associação Profissão Jornalista (APJOR), a jornalista Leda Beck classifica como "fenomenal" a biografia de Brandão. "Não consigo nem imaginar o desafio de ser uma repórter nos anos 1910. Eu comecei no jornalismo da chamada grande imprensa na década de 1970 e havia um punhado de mulheres que eram permanentemente assediadas, em um tempo em que a gente não se dava conta do que era o assédio", compara ela. "Só hoje me dou conta do quanto as mulheres sempre foram discriminadas."
"A história do jornalismo no Brasil centra-se na figura de homens brancos que lideraram, empreenderam e tiveram cargos de poder em cada época", analisa a jornalista Márcia Detoni, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. "O jornalismo excluía a mulher e assim permaneceu por mais de cem anos. As poucas mulheres que passaram pelas redações tiveram sua presença invisibilizada."
Pouco tempo depois da estreia, o próprio jornal A Rua noticiou a aposentadoria da "reportisa". Ela havia decidido buscar refúgio em um internato para moças. O que parecia o fim precoce de uma carreira, contudo, só demonstrou a veia da profissional para a reportagem investigativa: ela havia se refugiado na casa para entrevistar a irmã de uma mulher assassinada em um crime de alta repercussão naquele tempo.
Brandão seguiu morando no asilo por um período e publicou uma série de cinco reportagens sobre o cotidiano das internas. Foi quando ela foi alçada à fama no meio jornalístico, celebrada então como a "primeira repórter do Brasil".
Segundo Detoni, essa apuração "a partir da experiência imersiva" foi inovadora porque se tornou "uma prática jornalística de destaque no mundo só a partir dos anos 1960".
Trajetória
No mesmo ano, envolveu-se com o poeta e escritor Álvaro Moreyra (1888-1964), com quem acabaria se casando — e de quem assumiria o nome, tornando-se Eugênia Álvaro Moreyra. Com ele, teria oito filhos.
Ela trabalhou ainda nos jornais A Notícia e O Paiz. Ao lado do marido, participou na Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo. E acabou enveredando pelo teatro — fundou em 1927 o grupo Teatro de Brinquedo, de linguagem modernista.
A partir dos anos 1930, ao lado de nomes como a escritora Pagu (1910-1962) e o poeta Oswald de Andrade (1890-1954), passou a defender bandeiras da esquerda e do feminismo. Foi uma das fundadoras, em 1935, da União Feminina do Brasil e filiada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), o que fez dela uma das detidas após a Intentona Comunista ocorrida naquele ano.
Brandão presidiu, de 1936 a 1938, o sindicato da classe teatral Casa dos Artistas. Sufragista, candidatou-se a deputada federal constituinte em 1945, mas não foi eleita — assim como nenhuma outra mulher. Ela morreu em 1948, aos 50 anos, depois de um acidente vascular cerebral em sua casa, no Rio.
Outros nomes
Como costuma acontecer em histórias de pioneirismo, a primazia de Brandão não é um consenso — embora não se conteste a importância de seu legado. Detoni lembra que, antes mesmo, "nos primórdios da imprensa nacional", havia publicações voltadas ao público feminino, geralmente dedicados à moda e à literatura e, "nas primeiras décadas do século 20 já encontramos, como exceção, algumas mulheres na cobertura do cotidiano".
"Os autores divergem sobre quem seria a primeira jornalista ou a primeira repórter do Brasil", ressalta a professora. A questão fundamental é que, embora mulheres já redigissem notícias, era incomum o fato de elas reportarem, ou seja, irem às ruas em busca de informações.
Nesse sentido, houve uma jornalista portuguesa que atuou no Brasil antes de Brandão: Virgínia Quaresma (1882-1973), que trabalhou no periódico A Época em 1912. "Ambas as contratações [de Quaresma e de Brandão] foram anunciadas na imprensa da época como uma ‘modernidade'", ressalta Detoni.
"Talvez outras mulheres tenham atuado na imprensa antes ou concomitantemente em outras cidades do país. O importante é que o trabalho destas pioneiras venha à luz e seja valorizado pela contribuição que deram ao desenvolvimento do jornalismo e ao movimento de emancipação da mulher. Tanto Eugênia quanto Virgínia atuaram nas ruas, usando métodos investigativos inovadores e ousados na época para denunciar descaso e abusos", salienta.
Hoje
Se há 110 anos isso era exceção, hoje mulheres são maioria nas redações. De acordo com a presidente da APJOR, elas respondem por cerca de 60% da mão de obra no jornalismo brasileiro.
"Na minha opinião, isso indica duas coisas: uma boa, as mulheres estão ocupando cada vez mais espaços produtivos na sociedade brasileira", diz Beck. "Outra constatação é que, como historicamente já demonstrado, cresce a participação das mulheres toda vez que uma profissão começa a se degradar, os salários caem vertiginosamente e as condições de trabalho pioram. Porque os homens vão procurar outras coisas. "
Segundo dados levantados pela professora Detoni, as mulheres eram apenas 2,8% dentre os jornalistas de São Paulo em 1939, saltando para 7% em 1950 e 10%, em 1970. Levantamentos de abrangência nacional realizados a partir dos anos 2000 mostram que elas atingiram a maioria em 2004, com 52,4% das vagas. E, em 2001, eram 58%.
"Observa-se que o jornalismo é uma profissão que paga pouco para uma qualificação elevada. A presença majoritária de mulheres nas redações não se reflete em melhores salários ou cargos de chefia", comenta Detoni. "Em 2021, por exemplo, apenas 35% das contratações em cargos de liderança na Globo foram de mulheres, de acordo com relatório divulgado pela organização. Há um caminho longo ainda a ser trilhado para que o talento da mulher encontre espaço e reconhecimento."
Autor: Edison Veiga