A alta dos preços dos aluguéis e o desaparecimento de comércios locais são problemas conhecidos em cidades da Europa e dos Estados Unidos como resultado da chamada gentrificação. Esse processo de valorização de áreas urbanas começou recentemente a ser também observado na América Latina, onde plataformas como Airbnb e os nômades digitais entraram na mira das populações locais e das autoridades, gerando de protestos a cobranças por restrições.
Segundo o economista Bram Gallagher da plataforma AirDNA, que monitora o quadro dos alojamentos temporários ao redor do mundo, as cidades da América Latina têm visto um aumento na oferta de aluguéis de curto prazo nos últimos anos. No caso de São Paulo, por exemplo, a demanda por estadias curtas avançou 27% entre agosto de 2022 e o mesmo mês de 2023.
Em seu balanço mais recente, a Airbnb destacou a América Latina como a região com o maior crescimento na demanda pelos serviços da empresa após a pandemia. A companhia aponta o Brasil como um dos mercados menos explorados, apesar de avanços recentes. No segundo trimestre de 2023, houve um aumento de 110% nas reservas em território brasileiro quando comparado com igual período de 2019.
"Esses mercados eram relativamente subdesenvolvidos do ponto de vista do aluguel de curto prazo antes da pandemia: em março de 2020, São Paulo tinha apenas 12.700 anúncios disponíveis – enquanto isso, uma cidade menor como Paris tinha mais de 31.000, e Nova York chegou a 31.300", afirma o Gallagher. Hoje, São Paulo já conta com 20.235 anúncios. Já o Rio de Janeiro tem atualmente 22.775, liderando a disponibilidade na região.
De acordo com o economista, a expansão na América Latina ocorre à medida que alguns destinos se tornam mais populares. "Cidades como Medellín e Buenos Aires passaram a ser mais procuradas por trabalhadores remotos ou nômades digitais que têm mais flexibilidade para viajar e trabalhar após a pandemia", avalia. A cidade colombiana teve um incremento de habitações disponíveis para aluguéis temporários de 38% no último ano.
Nômades e gentrificação
A Cidade do México é vista como um dos grandes exemplos do avanço dos problemas causados pela gentrificação na região. Em bairros como Condesa e Roma, a disparada dos aluguéis é atribuída em grande parte à chegada de estrangeiros e das estadias de curta duração.
Segundo o portal Inmuebles24, o preço do aluguel de apartamentos em Condesa aumentou 66% nos últimos 24 meses. Ali, o valor médio mensal pago por uma propriedade passou de 16.043 pesos mexicanos (cerca de R$ 4,4 mil) em maio de 2021 para 26.740 pesos (R$ 7,4 mil) no mesmo mês de 2023.
Para Maria Silvia Emanuelli, coordenadora do escritório latino-americano da Coalizão Internacional para Habitação, o que se observa é um número significativo de habitações retiradas do mercado de arrendamento tradicional para serem oferecidas através de plataformas. Desta maneira, essas moradias passam a serem alugadas por indivíduos que normalmente possuem poder aquisitivo maior do que a população local.
"Vários estudos mostram que quando são oferecidas casas inteiras, e no caso da Cidade do México isso acontece em mais de 50% dos casos, há aumentos óbvios nos preços das áreas onde estão concentradas", aponta Silvia Emanuelli.
O custo de vida mais barato para americanos, que aproveitam o poder de compra do dólar, é um dos principais fatores que atraem cidadãos dos Estados Unidos para a cidade. Entre 2019 e 2020, o México viu um aumento de 85% no número de americanos que solicitaram o visto de residência temporária no país, de acordo com o Instituto Nacional de Migração mexicano.
Na visão de Silvia Emanuelli, diferente de outros continentes, a América Latina ainda não tem uma organização sólida para enfrentar este fenômeno. No entanto, no México, grupos de bairro, organizações e especialistas já se uniram para organizar protestos, debates e iniciativas legislativas, lembra. E esse movimento vem dando resultado.
Em setembro, a deputada Frida Guillem propôs no Congresso mexicano exigir o pagamento de uma diária a todos os turistas em trabalho remoto que passem mais de 20 noites em alojamentos no México.
Pressão por regulamentações
Em 2019, uma análise do Economic Policy Institute mostrou que os custos da expansão do Airbnb para locatários e jurisdições locais provavelmente excedem os benefícios para viajantes e proprietários de imóveis na maioria dos casos. Entre um dos principais efeitos negativos, o estudo observou justamente o potencial de alta de preços nos aluguéis de longo prazo.
Para Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Urbanismo e Arquitetura da Universidade de São Paulo (FAU-USP), este tipo de atividade tem um enorme impacto nos imóveis, e influencia justamente no mercado de aluguel de maior duração, o que vem sendo observado no México e em Medellín. "Está ajudando a destruir o mercado residencial de mais longo prazo. O efeito disso é aumentar tremendamente o valor do aluguel das unidades", avalia a especialista, que também foi relatora especial para Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas (ONU).
Diante deste quadro, Rolnik lembra que uma série de cidades no mundo assumiram regulações para o setor. "É muito importante que as medidas sejam definidas para preservar um estoque de aluguel para os moradores das cidades", avalia. Barcelona, Paris, Amsterdã, Lisboa e São Francisco estão entre os locais que impuseram restrições a esse tipo de negócio.
Efeitos práticos
Uma das legislações mais rigorosas foi adotada em Nova York no último mês, com as restrições chegando a serem chamadas de o "fim do Airbnb" na cidade. No entanto, há algum ceticismo sobre a o impacto prático de tais regulamentações.
Gallanger lembra que alguns estudos constataram que regulamentações rigorosas tiveram, na verdade, o efeito oposto ao pretendido e retardaram a criação de novas habitações, bem como reduziram as receitas fiscais, as despesas dos visitantes e as receitas de negócios relacionados.
"Tanto nos Estados Unidos como na Europa, estudos concluíram que qualquer redução nos preços da habitação quando as regulamentações foram introduzidas afetava principalmente propriedades de luxo e não ajudava na moradia de preços acessíveis", afirma o economista.
Silvia Emanuelli também aponta casos em que a restrição de plataformas não teve grandes efeitos. "Para avançarmos no controle da gentrificação, além deste tipo de medidas, devemos ter uma explicação clara das suas causas, devemos reservar espaços para as pessoas que menos têm, controlar os preços da habitação, tal como acontece com outros produtos, e controlar a especulação", destaca.
Concentração de unidades
Um dos elementos que a legislação de Nova York buscou limitar foi a concentração de muitas habitações com os mesmos anunciantes. Na América Latina, é comum encontrar mais de 100 unidades disponibilizadas por um único usuário, algo que se tornou um negócio lucrativo para muitas empresas que passaram a atuar na gestão dos aluguéis temporários. No caso de São Paulo, anunciantes chegam a contar com mais de 500 habitações, de acordo com a AirDNA.
"É uma atividade que toma o espaço das cidades com um tipo de produto que não é para os moradores. Acaba ofertando algo para pessoas que têm outras rendas", afirma Rolnik. A professora vê a presença dos chamados "corporate landlords", expressão que designa os responsáveis pela gestão de uma série de habitações em plataformas como o Airbnb.
"Precisamos entender que cada vez mais é uma atividade corporativa. São pessoas com dezenas, centenas e até milhares de unidades para locação. Virou um grande negócio com uma capacidade de mobilização muito grande de rendimentos financeiros", aponta.
Gallanger pondera os efeitos negativos da prática, e lembra que as empresas de administração de propriedades normalmente não possuem os imóveis que listam. "Em vez disso, os gerenciam em nome dos proprietários que talvez não possam fazê-lo sozinhos, garantindo limpeza profissional, disponibilidade para problemas e instalações de alta qualidade", afirma.
"É importante destacar que os anfitriões individuais com apenas um anúncio ainda desempenham um papel substancial na oferta global", aponta o economista. No caso do Rio de Janeiro, ele lembra que este tipo de locação representa cerca de 35% das unidades, "mantendo uma presença significativa no mercado de aluguel de curto prazo".
Autor: Matheus Gouvea de Andrade