Fomos testemunhas, na quarta-feira, 26 de junho, de um acontecimento mais do que estranho em La Paz. Depois de ter quebrado os portões do palácio presidencial com um blindado, um general do Exército boliviano declarou que ia instalar um novo gabinete ministerial. Mas, curiosamente, disse que "por enquanto" ia reconhecer o presidente Luis Arce como chefe das Forças Armadas.
Enquanto o governo boliviano pedia solidariedade e apoio internacional para frear o golpe e salvar a democracia, o próprio presidente encarou o general e seus tropas no corredor do palácio presidencial. Botando o dedo na cara do general, Arce ordenou o fim da mobilização militar. Pouco depois, os militares se retiraram, sem prendê-lo.
Ao ser preso, o general "golpista" acusou o próprio presidente de ter pedido, uns dias antes, tal encenação de um golpe, para ajudar a elevar sua péssima aprovação. "É preciso armar algo para levantar a minha popularidade", teria dito. "Botamos os blindados para fora?", teria perguntado o general ao presidente, que supostamente respondeu: "Bota."
Que história cabeluda, não é? Ninguém sabia o que realmente estava acontecendo. Só partes da mídia e da política brasileira tinham certeza dos motivos e até sabiam quem estava por trás dos golpistas. Foi fácil, pois era só pegar as antigas narrativas de sempre e aplicá-las ao presente caso.
Respostas prontas de todos os lados
Assim, a deputada Bia Kicis (PL-DF) comemorou a suposta tentativa de golpe de Estado nas redes sociais com um "Graças a Deus!". E seu colega Ricardo Salles (PL-SP) festejou: "Na Bolívia, as melancias têm culhões". O Exército derrubando um presidente da esquerda era tudo com que eles sonhavam, parece.
Também na mídia logo se sabia das coisas. O jornalista Reinaldo Azevedo, no seu programa O É da Coisa do mesmo dia, sabia que era um golpe de verdade pois "o próprio presidente da Bolívia disse que é um golpe". E ainda identificou a extrema direita internacional como responsável pelo golpe. "São as mesmas forças" que tentaram derrubar Lula em 2022 e 2023, assegurou.
E Leonardo Trevisan, professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo, identificou o motivo por trás do incidente, numa entrevista ao vivo na UOL: teria sido um "golpe por procuração", motivado pelo interesse em acordos internacionais pelo lítio e outros metais, além do hidrogênio verde. Agora que a Bolívia tem tudo de que se precisa para a produção de carros elétricos, logo vem o golpe, foi seu diagnóstico.
Numa primeira reação, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mostrou mais cautela. Não quis se pronunciar sobre o que estava acontecendo no país vizinho antes de se informar melhor e falar com seu ministro das Relações Exteriores e com o embaixador na Bolívia.
Mas no fim chegou à mesma conclusão que Trevisan, pois no dia seguinte confirmou que a tentativa de golpe na Bolívia poderia estar relacionada com as reservas de lítio, gás e outros minérios. "A Bolívia é um país que tem muitos interesses internacionais focados lá, porque é a maior reserva de lítio do mundo e outros minerais críticos de muita importância, além de ter gás. É preciso que a gente tenha em mente que tem interesse em dar golpe”, disse Lula.
Uma história cabeluda – de peruca
O presidente do Brasil lembrou ainda que "é muito importante que se mantenha a Bolívia governada democraticamente. Se não for assim, a Bolívia nem pode entrar no Mercosul." Pois, pelas regras do mercado comum sul-americano, não se aceita como membro um país onde tenha ocorrido um golpe.
Resta saber se isso também vale para um autogolpe. Pois é disso que o ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, acusa seu ex-companheiro do Movimento ao Socialismo (MAS) "Lucho", ou seja, Arce. "Pensei que fosse um golpe, mas agora estou confuso: parece que foi um autogolpe”, disse Morales. E que o mandatário "desrespeitou a verdade; ele nos enganou, mentiu, não apenas para o povo boliviano, mas para o mundo inteiro".
Morales ainda se desculpou pelo alarmismo, pois pediu ajuda internacional para derrubar o suposto golpe. Luis Arce, por sua vez, jura que não tem nada a ver com a ação dos militares. E assim, o que já era uma história cabeluda agora ganhou mais uma peruca.
Será que por trás de tudo isso está apenas a brutal e épica briga entre Morales e Arce pelo poder na Bolívia? E não os militares patriotas nem uma conspiração internacional, de interesses econômicos ou da extrema direita? A ver! Que essa história cabeluda sirva, pelo menos, para nos lembrar como é importante desligar nosso autopiloto ideológico.
--
Thomas Milz saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.
O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente da DW.
Autor: Thomas Milz