Nos últimos anos, houve um aumento no número de casos de transtornos mentais. Esse crescimento impulsiona o surgimento de aplicativos de saúde mental sem a interação direta com um psicólogo.
Robôs de conversa, jornadas instruídas e meditação guiadas são algumas dessas ferramentas que, se usadas com cautela, podem ajudar pacientes sobretudo nos casos de transtorno de humor, como ansiedade e depressão, avalia a psicóloga e pesquisadora Karen Sacavacini.
Doutora em psicologia e especialista em promoção de saúde mental e prevenção do suicídio, Sacavacini questiona a motivação por trás do boom de aplicativos para transtornos mentais e fala sobre prós e contras dessa tecnologia em entrevista à DW.
DW: Qual é o cenário geral dos transtornos mentais no Brasil hoje? Houve um aumento no número de pessoas com problemas nos últimos anos?
Karen Sacavacini: Vimos durante a pandemia quase uma tempestade perfeita, porque as questões de saúde mental já estavam piorando. Vem a pandemia, o isolamento, e na volta os estudos mostram uma piora na saúde mental geral: depressão, ansiedade, fobia social. Já tínhamos notado um crescimento das questões relacionadas à saúde mental há muitos anos.
A depressão hoje é a causa número um de afastamentos do trabalho no Brasil, e ainda não entendemos a extensão dos danos da pandemia com relação à sociabilidade dos jovens. Porque houve aí um aumento expressivo do uso da internet e das tecnologias nesse período. Há uma dificuldade maior do jovem nessa interação social sem o aplicativo, sem o telefone para mediar essas interações.
Os jovens têm sido mais afetados por transtornos mentais?
Entre os jovens têm aumentado as taxas de ansiedade e depressão. Aumentou também o número de jovens com transtorno de pânico, com crises de ansiedade dentro da escola. Houve até casos de escolas com crise de ansiedade coletiva entre os alunos.
Não podemos generalizar, mas para eles está mais difícil de lidar com pressões, sentimentos, reações a esses sentimentos. Vemos ainda um aumento do número de jovens em tentativas e também em suicídios, embora as taxas de suicídio especificamente sejam maiores entre homens adultos e idosos.
Os aplicativos de saúde mental com uso de inteligência artificial e jornada guiada são eficazes?
Para os transtornos de humor em geral, como o de ansiedade e depressão, eles têm ajudado bastante, e têm uma capacidade de ajuda muito maior, até mesmo antes de a pessoa chegar a ter um transtorno de fato. Eles acabam ajudando na educação socioemocional e na promoção da saúde mental antes da intervenção para quando já se tem um transtorno.
Há riscos para algum tipo transtorno?
Transtornos psicóticos talvez sejam um pouco mais difíceis de serem tratados com um aplicativo. Eu particularmente não conheço nenhum app que trate de transtornos psicóticos como a esquizofrenia, que é o mais conhecido.
Além disso, há casos de pessoas que têm se vinculado afetivamente aos robôs, aos chatbots de inteligência artificial. Isso mostra como o ser humano precisa de interação, ele precisa se sentir pertencente, ele precisa se sentir importante. Isso nos traz um alerta sobre o que está acontecendo no mundo para alguém precisar ter um vínculo com um robô.
Tenho visto idosos e pessoas que moram sozinhas tendo vínculo com a Alexa. Então a Alexa ajuda a rezar o terço, ajuda a bater papo. Se a Alexa, que tem todas as suas limitações, tem feito esse papel com idosos e com pessoas que moram sozinhas, quando você coloca uma inteligência artificial com mais informações, ela pode provocar uma sensação de vínculo. Isso é uma questão muito delicada.
Você vê algum conflito de interesse entre motivação financeira e ajuda ao paciente nestes espaços?
É muito difícil analisarmos se aquele aplicativo está voltado ao lucro ou ao bem do paciente. Até porque hoje a quantidade de apps de saúde mental é absurda e isso tem crescido. Dos últimos anos para cá foram milhões em investimento de novos apps de saúde mental.
Eu não estou sendo hipócrita de dizer que os apps tenham que ser gratuitos, de forma alguma. Houve um desenvolvimento grande, eles precisam ter um retorno financeiro. Mas essa balança eu acho que é muito difícil de medir ao certo, porque todos começam com a versão gratuita. Aí você faz um teste, já dá um monte de informação para aquela plataforma, e depois ela vai te oferecer algo pago.
Há um comércio em cima da saúde mental, usando aplicativos, e acredito que pelo que muitas plataformas têm faturado hoje, esse comércio só tem aumentado. Então é voltado para o comércio ou para a pessoa? Não sei dizer, acho que depende muito do aplicativo.
Qual o limite da atuação da inteligência artificial?
A inteligência artificial é treinada, mas há algo da subjetividade, do comportamento, da interação, da expressão, que ao menos por enquanto é o psicólogo que vai fazer.
A inteligência artificial pode sim dar suporte para um psicólogo, para um terapeuta, mas a decisão clínica deveria ser do profissional. Ela pode até ser coterapeuta, um suporte entre sessões, ou ajudar pessoas que não querem falar com um terapeuta e preferem ter uma interação com uma inteligência artificial. Mas chega um momento que ela não vai dar conta, pelo menos não por enquanto ela não vai dar conta.
Como você encara isso no futuro próximo?
A tecnologia está se desenvolvendo rapidamente com relação à saúde mental. São muitos os recursos hoje disponíveis e daqui alguns anos, acredito que muito mais. Eu acho que a inteligência artificial na saúde mental tem um potencial enorme, inclusive de ajudar muitas pessoas que têm resistência à terapia tradicional. Agora, até onde isso vai sem a regulamentação?
Pode ser que daqui a dez anos o que eu estou falando hoje seja completamente obsoleto. Que a inteligência artificial chegue num ponto onde você tenha uma terapeuta virtual treinada em todas as linhas da psicologia. Que ela consiga, depois de muito treino, entregar uma terapia consistente. Mas no momento eu acho que são questões que precisamos refletir.
Autor: Gustavo Basso