Em 24 de março de 1883, o jornal Germania, periódico em língua alemã editado em São Paulo, publicou na página 3 uma lista intitulada "Dez mandamentos para emigrante", com conselhos para os alemães que chegavam ao Brasil ano a ano.
Os preceitos incluíam: "Você deve suportar com paciência os primeiros revezes e dificuldades"; "Você deve manter os olhos bem abertos para não ser enganado por falsos amigos"; "Você não deve permanecer muito tempo na cidade, mas seguir rapidamente para o campo para trabalhar"; e "Você deve fazer o máximo possível para aprender a língua do país".
À medida em que comunidades germânicas foram se estabelecendo no país, jornais em língua alemã foram sendo criados como suas principais fontes de informação – trazendo orientações para os imigrantes recém-chegados, como nos mandamentos acima, ou sobre as regras e burocracias nacionais, e também indo muito além disso, cobrindo as principais notícias nacionais e internacionais para seus leitores.
Levantamentos estimam que 250 títulos de jornais em alemão foram publicados no Brasil entre 1852 e 1941, produzindo 1,3 milhão de páginas em grande formato – daqueles jornalões de ler com os braços bem esticados, com textos palavrosos e letras miúdas, de início sem fotos, com poucas ilustrações e por vezes em tipografia gótica.
Professor de língua e literatura alemã na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e na Universidade Federal Fluminense (UFF), Paulo Soethe afirma que esses jornais tiveram números e tiragens muito significativos e são uma fonte de pesquisa essencial sobre o passado das colônias alemãs no Brasil até 1941 – quando Getúlio Vargas proibiu jornais em língua estrangeira no país, interrompendo o ciclo mais rico dessa imprensa.
"Esses periódicos são um grande espelho da vida das comunidades alemãs nesse período, permitindo acompanhar os debates que ocorriam e ter uma visão bastante detalhada do dia a dia", explica Soethe.
Temática abrangente
Os jornais eram uma ponte para os imigrantes alemães se situarem na nova terra. Ajudaram a dar-lhes voz coletiva e senso de comunidade, mantendo laços culturais e o idioma – mas iam muito além de um cultivo da germanidade. "Os jornais não eram provincianos ou de interesse de uma comunidade rural", descreve Soethe. "Continham discussões interessantíssimas, muito ligadas aos debates nacionais."
Ele cita debates contrapondo os modelos de Império ou República; defendendo a filosofia positivista em reação a correntes religiosas vigentes; ou se posicionando a favor da abolição da escravatura – um exemplo das visões progressistas de burgueses liberais que fugiram para as Américas após o fracasso das Revoluções de 1848.
Soethe é vice-coordenador do Laboratório de Estudos da Memória Multilíngue Brasileira (Lemmbra*de), uma iniciativa da UFF e da UFPR com diversos parceiros na Alemanha. O projeto tem como missão digitalizar jornais guardados em diversos arquivos e instituições no Sul e no Sudeste para dar sobrevida a esses acervos e ampliar a produção de estudos sobre essas fontes. A ideia surgiu da percepção da importância desses jornais para desvendar o legado alemão no Brasil – e do risco de que se percam com os anos.
Das 1,3 milhão de páginas que foram publicadas, Soethe estima que o projeto consiga digitalizar entre 60% e 70%, porque muito já se perdeu. "A finalidade é dar um futuro a esse passado", resume o pesquisador paranaense.
Os "intelectuais" das colônias
Os jornais em idioma alemão eram fundados por igrejas, burgueses liberais progressistas, famílias proeminentes, associações, uma ampla gama de atores. Eram pessoas que se destacavam por ter mais formação e estofo intelectual – como jesuítas, pastores luteranos ou os Brummer – como foram designados os soldados germânicos convocados pelo Império do Brasil para lutar na Guerra do Prata, em 1851.
Ao fim dessa disputa com Argentina e Uruguai em torno do controle no Rio da Prata, muitos desses soldados se estabeleceram no Rio Grande do Sul, atraídos pela promessa de lotes de terra ao fim do serviço militar.
"Eles se tornaram uma elite pensante nas comunidades, dando início a alguns dos grandes jornais", explica o historiador René Gertz, que fez um levantamento dos títulos editados no RS entre 1850 e 1940, registrando 144 jornais no estado.
Gertz aponta que a cobertura internacional nesses jornais costumava dar destaque ao que estava acontecendo na Alemanha (ou nos reinos precedendo a unificação, em 1871). Entretanto, a cobertura era "sobre tudo". Trazia notícias do mundo e do Brasil, com ênfase à política brasileira em todas as esferas – o que ocorria no Congresso, nas Assembleias Legislativas estaduais, nas câmaras municipais.
"São jornais políticos, assim como a imprensa brasileira. Mas é importante frisar que são jornais brasileiros em língua estrangeira – não são jornais alemães", ressalta Gertz.
O Brasil traduzido
A historiadora Isabel Arendt, professora de Letras na Unisinos, em São Leopoldo (RS), afirma que esses periódicos frequentemente traziam notícias importantes dos principais jornais brasileiros, resumidas em alemão. "Eles faziam uma tradução cultural de tudo o que acontecia no país para essa população, ajudando no processo de integração", aponta Arendt. "Eles tinham acesso a tudo que estava acontecendo no país. Ou seja: você não se integra se não quiser."
Os jornais refletiam também costumes e eventos culturais, expondo assim a produção literária, musical, teatral e operística que existia nas colônias alemãs. Havia espaço também para traduções da literatura brasileira, conta a pesquisadora, como folhetins apresentando José de Alencar aos imigrantes ou seus descendentes.
Arendt faz parte do Lemmbra*de e é uma pesquisadoras do Grupo de Estudos da Imprensa em Língua Estrangeira no Brasil, o Transfopress Brasil. O projeto é internacional e tem um núcleo brasileiro capitaneado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). O foco de Arendt são as publicações em alemão, olhando para seu papel não apenas como fomentadores de uma identidade germânica, mas também como uma ponte transcultural.
"Os jornais foram editados para durar um dia, uma semana, mas hoje são uma referência sobre essa população e sua história. Eles são o que permaneceu, trazendo toda a vivência, práticas sociais e educativas que não teríamos sem esses registros e que acabarão se perdendo se não cuidarmos desses acervos", ressalta a pesquisadora.
"O bicentenário da imigração alemã deve nos incentivar a cuidar dessa riqueza para viabilizar o acesso a essas fontes por outros 200 anos", considera.
Duas guerras, dois golpes
Após décadas de produção prolífica, essa imprensa enfrentou uma série de baques ao longo da primeira metade do século 20, a começar pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Os jornais escaparam ilesos nos primeiros anos do conflito, mas foram proibidos quando o Brasil entrou na guerra, em 1917.
Em alguns casos, Gertz diz que a tendência foi manter as publicações, mas vertendo seus títulos e textos para o português. Assim, o Urwaldsbote, de Blumenau, se tornou O Mensageiro da Floresta; e o Deutsches Volksblatt, de Porto Alegre, virou Folha Popular. As estruturas de redação e parques gráficos foram mantidos e, ao fim da guerra, os jornais seguiram em frente.
A pá de cal, entretanto, veio durante o Estado Novo, com a campanha de nacionalização promovida por Getúlio Vargas com objetivo de forçar a integração de imigrantes e seus descendentes à cultura brasileira. A política foi implementada a partir de 1938, antes da Segunda Guerra Mundial, começando por vetar escolas de lecionarem em outras línguas que não o português. Depois, Vargas vetou jornais em língua estrangeira e proibiu que a língua alemã fosse usada em público. Em 1942, após o Brasil entrar na guerra, protestos contra alemães no Brasil incluíram a depredação de jornais e máquinário da imprensa teuto-brasileira.
"A grande imprensa de língua alemã no Brasil, a que eu chamo de imprensa política, acabou em 1941", afirma Gertz. Depois da guerra, sobreviveram almanaques anuais, folhas religiosas ou esportivas e periódicos menores, mas sem a expressividade de outrora.
A sombra do nazismo
Um forte entrave para a retomada dos jornais em alemão após a Segunda Guerra foi a sombra do nazismo e a influência que emissários de Hitler exercitaram sobre as redações. Segundo Soethe, a partir de 1933 houve um processo de nazificação de parte dessa imprensa.
"Com sua perspicácia midiática, os nazistas faziam propaganda e tentavam ganhar os editores dos jornais. Cônsules ofereciam dinheiro e pintavam o que acontecia na Alemanha como queriam. Houve uma tentativa feroz de nazificação da mídia por agentes diplomáticos no Brasil", afirma.
Soethe destaca, entretanto, que a campanha de nacionalização de Vargas começou antes do início da Segunda Guerra, com motivações nacionalistas que nada tinham a ver com o nazismo. De início, o regime de Vargas nutria simpatias por Hitler e Mussolini. Mais tarde, entretanto, Vargas pôde atribuir as restrições que impôs ao nazismo e à propagação do ideário nazista entre colônias alemãs.
"Toda essa documentação ficou completamento invisível por causa das ações autoritárias de proibição do idioma a partir de 1938, o que resultou numa negligência completa com a guarda e a documentação desses jornais", afirma Soethe, destacando que a maior parte que sobreviveu está em acervos estaduais, municipais ou privados, enquanto a Biblioteca Nacional tem poucos títulos.
"Depois de um século de imigração constante da Alemanha para o Brasil, uma confluência de fatores acabaram tornando a própria presença alemã no Brasil uma espécie de tabu", ressalta o pesquisador. "Isso resultou numa consciência limitada e superficial da contribuição alemã para o país, muitas vezes restrita a festas e eventos folclóricos."
Preservar e disponibilizar esses jornais é uma chave para tirar essa história da invisibilidade, trazendo à tona o legado dessas comunidades e seu papel na formação da sociedade brasileira.
Autor: Júlia Dias Carneiro