Jornal da Band

Com gás de cozinha beirando os R$ 100, brasileiros precisam usar lenha para cozinhar

Com a mudança na política de preços da Petrobras e a disparada do dólar, um botijão já equivale a 10% do salário mínimo

Da Redação, com Jornal da Band

Com o preço do gás de cozinha nas alturas, cada vez mais brasileiros estão recorrendo à lenha para cozinhar. No Jornal da Band, o repórter Yan Boechat conversou com diversas famílias que para preparar seus alimentos buscam madeira até mesmo em restos de construção. 

A rotina de Adilma Jesus Dias começa cedo. Desde que o dinheiro rareou, suas manhãs tem sido assim. Machado na mão, madeira cortada, panela sobre as brasas em chama.

“O gás sempre vai aumentando. E sempre eu ou meu marido desempregados, sem dinheiro para comprar o gás. Aí eu falei: vou fazer meu fogãozinho porque o gás fica só para a hora de precisão", relatou a dona de casa.

No começo, Adilma cozinhava de forma improvisada, com tijolos e uma grelha sobre o chão de terra batida de sua casa, na zona sul de São Paulo. Há dois meses. ela mesma amassou o barro e construiu um fogão na porta de casa. Depois, o pintou de verde. O que era para ser temporário virou permanente.

Adilma não está sozinha nesse retorno a um passado que parecia distante. Com a mudança na política de preços da Petrobras e a disparada do dólar, em algumas regiões do país, um botijão já equivale a 10% do salário mínimo.

Como milhões de brasileiros, na casa de Ana Paula Sá, em Cajamar, na grande São Paulo, ela precisa recorrer à lenha por conta do preço alto do gás. E ela mescla o uso com o fogão convencional para economizar.

"Quando eu tenho gás, eu faço o arroz, a mistura, as coisas aqui [no fogão] e o feijão eu faço na lenha, porque economiza bastante", explicou a desempregada.

Ana ainda está cozinhando de forma improvisada. Mas já pensa em construir também algo mais estruturado. 

Como está no chão, eu decidi colocar ela inteira, tá vendo como ela tá grandona [a peça de madeira]. Aí eu só vou quebrando ela (sic) aqui de novo colocando para dentro”, disse.

Ana e Adilma começaram a recorrer ao fogão de lenha só no ano passado, quando a pandemia tornou ainda mais dura a vida da grande massa de trabalhadores informais que habita as periferias brasileiras. Mas esse não é um fenômeno exatamente novo.

Entre 2016 e 2019, o IBGE registrou um aumento de quase 30% no número de famílias que usam lenha ou carvão para cozinhar. Há dois anos, uma em cada quatro famílias brasileiras usava lenha em algum momento para fazer seus alimentos.

No Sudeste, onde historicamente o uso de lenha e mais raro, o aumento foi ainda maior, mais de 60%. 

Com a pandemia e as restrições orçamentárias, o IBGE não divulga esses indicadores há quase dois anos. Por isso, esses números já não refletem a realidade de um país que passa por um acelerado processo de empobrecimento. 

“Se a gente pensar no Norte e Nordeste, o Nordeste é a região que mais usa lenha. Porque ela está associada ao nível socioeconômico. Então, isso na verdade é uma métrica mundial. Quanto mais se usa lenha, mostra que o povo tem menos acesso, menos condições econômicas de buscar um outro combustível mais limpo, menos poluidor, menos tóxico. Então isso e uma métrica mundial que a organização mundial da saúde usa”, analisou a professora de química da PUC-RJ, Adriana Gioda. 

Adriana é uma das poucas pesquisadoras brasileiras dedicada a estudar o consumo de lenha nos lares do Brasil. 

Para quem frequenta as periferias das grandes cidades, cenas de uma panela sobre uma fogueira improvisada tem sido cada vez mais comuns. 

“A gente percebeu que esse número é grande. São muitas pessoas que estão cozinhando a lenha. Porque elas acabam cozinhando lá, no cantinho delas, acaba não expondo essa demanda. E a gente percebeu esse aumento”, atestou Deraldo Silva, coordenador da Central Única de Favelas (Cufa). 

Maria Aparecida Corrêa perdeu a vergonha. Desde que a pandemia tornou tudo mais difícil em uma comunidade pobre da Praia Grande, na baixada santista, ela evita cozinhar no gás. Improvisou um fogão na rua mesmo. E explica as dificuldades em cozinhar dessa forma.

“Tem que lavar as panelas, fica preta, tem que ariar. Os vizinhos também não gostam, muita fumaça, mas tá precisando daquilo, né? Tem que cozinhar, como vai fazer a comida? A fumaça vai pra cima, as telhas ficam todas pretas. Tudo isso acontece”, explicou Maria, que também reclama do cheiro de fumaça pela casa. 

Como a maioria das pessoas da comunidade, ela trabalha com reciclagem. Consegue fazer entre R$ 800 e R$ 1.000 em um bom mês. Com o botijão de gás chegando a R$ 100, usa o fogão de casa apenas para coisas simples. Adicionou à rotina a tarefa de encontrar madeira para cozinhar, procurando em caçambas com restos de obras de construção, por exemplo. 

Toda vez que acende o fogo, Maria lembra da infância. Retorna ao tempo em que sonhava vir para cidade grande em busca de conforto e oportunidade. 

“Quando meu pai falava assim 'vai lá pra cidade que lá tem tudo, a gente vai para cidade grande, vai abandonar as coisas na roça aqui. E lá vai ter de tudo’. E pelo que eu tô aqui na cidade grande, há um tempão já, não é aquilo não”, relembrou, para depois completar: 

"Acho que tô na roça de novo, tô lá no sertão. Foi esse meu pensamento”. 

Na reportagem especial desta terça (6), você vai entender porque o preço do gás aumentou tanto nos últimos anos.