A população brasileira é formada por 51,1 % de mulheres. Os dados são do Censo de 2022. Ou seja, nós somos maioria. O mesmo estudo indica que 45,3% da população se identifica como preta ou parda. Enquanto 42,8% dos brasileiros se consideram brancos.
Os números são claros e um retrato da desigualdade do país, já que, como todos sabem, mulheres e negros (e ainda mais mulheres negras) estão na base da pirâmide dos salários e também do acesso a espaços de poder. Continuamos sendo governadas por homens (em sua maioria, brancos). E, por mais que o feminismo e a luta antirracista avancem no país, ainda continuamos banidos e banidas dos espaços de poder.
Nesta segunda-feira (27/11), tivemos mais um exemplo doloroso dessa realidade, quando o presidente Lula anunciou a indicação de Flávio Dino, o atual ministro da Justiça, para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF). No mesmo dia, o presidente anunciou outro homem para um cargo do primeiro escalão: Paulo Gonet, como procurador-geral da República.
A indicação de Dino é lamentada por muitos (e me incluo no grupo) que preferiam que ele continuasse no Ministério de Justiça, onde se destacava como um nome forte na luta contra a extrema direita e também se revelava um nome forte para a sucessão de Lula nas próximas eleições presidenciais de 2026.
Mas o gesto tem um gosto ainda mais amargo para nós que queremos igualdade nas esferas de poder: a indicação de Flávio Dino encerra de uma vez o sonho de termos uma mulher negra no STF, um pedido de movimentos de mulheres negras, que fazem uma campanha há meses por essa indicação. A campanha, que envolveu 18 organizações sociais, reuniu 28 mil assinaturas até setembro. Membros do governo também se manifestaram a favor da campanha.
"A concepção de mundo diversa enriquece o conhecimento jurídico, a experiência da cátedra, numa via de mão dupla", declarou a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco. E ela não está sozinha. Deputadas de vários partidos mandaram uma carta para Lula pedindo que uma mulher negra fosse indicada e o movimento foi abarcado também por várias esferas da sociedade. Essas pessoas (milhares) entenderam que está hora de uma mulher negra ocupar esse espaço. Não, nunca houve uma mulher negra na Suprema Corte.
Fortes motivos
Ninguém defende isso por "capricho", mas por razões bem reais. Mulheres negras formam uma das parcelas mais vulneráveis da população brasileira, e ao mesmo tempo, são uma força econômica do país. Segundo um levantamento da Fundação Getúlio Vargas, mais da metade dos lares do país são chefiados por mulheres. Entre elas, as negras são maioria. Essas mulheres precisam também ter voz. A campanha foi enorme. E, mesmo assim, a demanda de mulheres não foi ouvida (de novo). Como sempre, a impressão que fica é que falamos sozinhas.
Resultado: se um ET chegasse no Brasil em 2023 e visse uma reunião do STF, acharia que o Brasil é um país majoritariamente branco e masculino. Com a saída de Rosa Weber e sua substituição por um homem, Cármen Lúcia passa a ser a ÚNICA mulher na Suprema Corte. Em um grupo de 11, só haverá UMA MULHER.
Não é possível que isso seja considerado "normal" e aceitável por alguém. Até parece que estamos andando para trás. De duas ministras, o que já era ridiculamente pouco, agora só temos uma. Absurdo. Ao ser interrogado sobre o nome que indicaria ao STF, em setembro, Lula disse que gênero e cor não seriam os critérios para a escolha. Sério? Assim, o único gênero que ganha é o masculino, presidente.
Mulheres só perdem
Representatividade importa. E não estou falando só de fotos e imagens que mostram diversidade, mas também de outras questões práticas. Se a legalização do aborto for votada pelo STF, quem decidirá o destino das mulheres? Dez homens e apenas uma mulher! Não por acaso, a pauta foi colocada no STF por Rosa Weber, como seu último gesto antes de se aposentar. O mesmo teria sido feito por um homem? Não é óbvio que precisamos ocupar mais espaços?
Cada vez fica mais difícil manter a esperança de que essas mudanças aconteçam logo. O que mais estamos vendo são mulheres sendo leiloadas para o Centrão, um grupo político que vive de "chantagear governos e pedir cargos". Nesse toma lá dá cá, as primeiras a serem rifadas são mulheres.
O governo Lula começou com um número recorde de mulheres ministras: 29%. É pouco? Sim, devia ser pelo menos a metade. Mas esse foi um número recorde de representatividade feminina. "Nunca antes na história o Brasil teve tantas mulheres ministras", comemorou Lula, em janeiro, quando elas foram indicadas.
Menos de um ano depois, esse número já caiu para nove. Ana Moser, dos Esportes, foi trocada por Francisco Dantas, conhecido como "Fufuca Dantas". Daniela Carneiro, do Turismo, por Celso Sabino. O governo estreou também com mulheres no comando da Caixa Econômica Federal e no Banco do Brasil. No caso da Caixa, Maria Rita Serrano foi substituída em outubro por Carlos Vieira Fernandes, homem de confiança do Centrão.
No jogo político (e não só nele), mulheres só perdem. Isso é injusto e contraproducente para o país. Ou vocês acham que mulheres não teriam que colaborar? Sinceramente, cansa.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW e da Band.
Autor: Nina Lemos