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"Não era fácil ter aquele espírito livre nos anos 1970"

"Angela" aborda últimos meses de vida da socialite Ângela Diniz, vítima de um crime que expôs o machismo no Brasil nos anos 1970. Em entrevista, diretor Hugo Prata explica por que escolheu não abordar julgamento do caso

Por Deutsche Welle

Quem assistir à cinebiografia sobre a socialite Ângela Diniz, assassinada em 1976 por seu então namorado, o empresário Doca Street, não vai ser exposto a julgamentos morais sobre sua vida passada, nem às argumentações jurídicas que buscaram isentar de culpa seu assassino alegando que agiu em "legítima defesa da honra”.

O filme retrata a história de Ângela sem as camadas de julgamento que culpabilizaram a vítima pelo próprio assassinato. "Não importa como ela viveu sua vida”, diz o diretor Hugo Prata. "O filme começa no dia em que eles se conheceram, e acaba no dia em que ele a matou. É isso que importa.”

O filme Angela, que estreia nesta quinta-feira (07/09), é a história de um feminicídio, e resgata o que aconteceu com Ângela Diniz sob o prisma da violência doméstica. Está lá a escalada de rompantes de ciúme para agressões cada vez mais violentas. Está lá a culpabilização da vítima, que apanha e escuta frases como "olha o que você me fez fazer”. E está lá o frisson que cercou o caso de amor explosivo na alta sociedade brasileira, e culminou com um dos assassinatos mais notórios da história do Brasil. Ângela Diniz é vivida por Isis Valverde, e Doca Street, por Gabriel Braga Nunes.

Conhecida como a "pantera de Minas”, Ângela Diniz foi morta aos 32 anos por Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street, em 30 de dezembro de 1976, pouco depois de terminar o relacionamento com ele. Doca deu quatro tiros em Ângela, três no rosto e um na nuca. O crime ocorreu na casa onde viveram por dois meses em Búzios, balneário do Rio, e foi tema recente da série de podcasts "Praia dos Ossos”, nome da praia onde tentaram construir uma vida longe dos holofotes das capitais.

No primeiro julgamento de Doca, sua defesa, liderada pelo conhecido advogado Evandro Lins e Silva, obteve pena de apenas dois anos para o assassino, usando a argumentação de que a morte foi justificada por "legítima defesa da honra”. A sentença branda motivou protestos feministas, inaugurando o lema "quem ama não mata”. Em 1981, Doca foi julgado novamente e condenado a 15 anos de prisão. Em agosto deste ano, o Supremo Tribunal Federal declarou o uso da "legítima defesa da honra" inconstitucional em crimes de feminicídio ou agressão contra mulheres.

DW Brasil: O que motivou sua decisão de realizar um filme sobre a Ângela Diniz?

Hugo Prata: Depois que eu entreguei Elis, meu primeiro longa-metragem (sobre a cantora Elis Regina), comecei a pesquisar histórias para uma nova biografia. E encontrei a Ângela. A história dela foi muito presente na minha família. Quando ela foi assassinada, eu tinha 11 anos e me lembro do impacto, do escândalo, "a pantera de Minas”, as imagens do Fórum de Cabo Frio na TV (onde foi realizado do julgamento de Doca Street).

Vi que era preciso contar melhor a sua história. A defesa do primeiro julgamento não só colou, como perdura até hoje. Quando as pessoas falam da morte da Ângela, falam de sua vida pregressa. O advogado tinha de defender um cara que deu quatro tiros em uma mulher. Adotou como estratégia a "legítima defesa da honra". Aliás, nunca sonhei que ia lançar o filme logo depois de essa tese ser formalmente enterrada pelo STF.

O que importa se Ângela era baladeira, ou como foi seu baile de debutantes? Essa estratégia de desqualificar a pessoa assassinada é muito cruel. Achei que a história precisava de outra abordagem.

O podcast "Praia dos Ossos” entrou a fundo nessa história. Foi uma inspiração para vocês?

Não, nosso projeto é anterior. Comecei o filme em 2016. O podcast é brilhante, mas são produtos bem diferentes, alcançam públicos distintos. Acho que o audiovisual tem alcance e vida mais longos. Fiz o filme pensando nas pessoas que não conhecem a história da Ângela.

Para a garotada que vai ver, já vai nascer outra Ângela. Ela vai surgir com outra imagem, como a que namorou um cara violento, e não como a mulher baladeira, impossível, tudo o mais. É um absurdo usar isso como justificativa para a morte dela.

Tem aquela frase icônica do Carlos Drummond de Andrade da época do julgamento. "Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras”. Isso diz muito sobre nossa motivação de fazer o filme.

Você falou de como a imagem do julgamento se perpetua. Como o filme retrata a Ângela?

Descartamos a vida pregressa dela. Não importa como ela viveu sua vida. Ela tinha direito de viver como quisesse. Ela tomou três tiros no rosto porque um dia ela conheceu esse cara. Então o filme começa nesse dia.

Também descartamos o julgamento. Porque foi lá que se consolidou o plano de desqualificar sua imagem. Eu jamais abriria câmera para advogados criando esses argumentos. O filme começa no dia em que eles se conheceram, e acaba no dia em que ele a matou. É isso que importa.

Buscamos trazer suas angústias, entender o que a afligia. Diziam que ela tinha um sorriso triste. Que na festa ela dominava, mas que tinha algo de melancólico. Certamente não era fácil ter aquele espírito livre nos anos 1970, indo contra a sociedade tradicional, machista, no grand monde paulista, carioca e belo-horizontino.

A Ângela mãe aparece com força no filme, na angústia que sentia com a separação dos filhos. Isso veio de depoimentos?

Ela tinha três filhos, tinha uma relação saudável com eles, mas estava separada deles por problemas judiciais. Entendemos que isso era um fator central de desestabilização.

Ela cedeu a guarda dos filhos para o marido para que ele assinasse o desquite. Esse é um engano comum: ela nunca perdeu a guarda dos filhos. O marido não queria que ela fosse embora. Era uma vergonha ser largado por uma mulher na sociedade da época. Para assinar o desquite, impôs como condição a guarda dos filhos. Ela pagou esse preço alto pela liberdade. Vejo isso como um ato de coragem.

O filme constrói bem a escalada gradual da violência doméstica. Mas abrevia as agressões de Doca, que só aparecem depois que o casal se muda para Búzios, quando há relatos anteriores de violência na vida do casal.

Damos uma senha no início, na cena em que Doca pega Ângela pelo braço, enciumado na boate. Ou quando ele fala de seu gosto pela caça. Precisávamos de uma curva crescente. Quero que as pessoas gostem dele no primeiro ato. Que entendam quem eles eram, para acompanhar como um louco amor depois apodrece e descamba.

Isso é da estrutura básica das relações violentas. Ouvimos tantas mulheres dizerem que o parceiro era a pessoa mais gentil no início. Quisemos focar na relação dos dois e entender o que aconteceu naquela casa. Pouca gente sabe, mas foram só quatro meses. Eles se conheceram em agosto, foram para Búzios dois meses depois, e ele a matou dois meses depois. Foi tudo muito rápido.

"Por que você não foi embora antes” é a questão de todas as relações violentas. Ela tinha como perceber, mas não percebeu. Mesmo sendo tão inteligente, livre. Podia ter encerrado antes. Mas tinha fragilidades que a expuseram a uma relação assim.

Como tem sido a recepção do filme?

O público fica tocado. Comecei a receber uma enxurrada de mensagens de mulheres contando que já viveram relações violentas, ou estão vivendo, ou conhecem alguém. Que o filme as ajudou a entender o que viveram. O filme dá um click.

Não fizemos um filme para militar, mas a potência do assunto está tomando corpo. Está impactando as pessoas como algo contemporâneo, que fala de um fenômeno muito calado. Quantas mulheres já tiveram um namorado que as pegou pelo braço e chacoalhou? É horrível isso. Mas esse raciocínio está em todos os lugares, na alta sociedade, na baixa também. Tentamos ser um espelho para expor isso.

Autor: Júlia Dias Carneiro

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