"Verde e amarelo, sem foice nem martelo", "vermelho bom, só o batom", "abaixo os imperialistas vermelhos", "o Brasil não será uma nova Cuba". Essas foram algumas das frases de efeito gritadas na Avenida Paulista. Não só recentemente, em eventos em defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro. Mas também em uma megamanifestação ocorrida há 60 anos que entrou para a história: a Marcha da Família com Deus pela Liberdade — ou simplesmente Marcha Paulista ou ainda Marcha de São Paulo.
Calcula-se que cerca de 500 mil pessoas caminharam da Praça da República à Praça da Sé, no centro de São Paulo. O ato, convocado por grupos conservadores como a Campanha da Mulher pela Democracia, a União Cívica Feminina, a Fraterna Amizade Urbana e Rural, a Sociedade Rural Brasileira, entre outros, contou com apoio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e simpatia de boa parte da grande imprensa.
"A Marcha ajudou a mobilização pelo golpe, contribuiu para difundir sua justificativa principal, na linha do anticomunismo e antiesquerdismo", contextualiza o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "Sem dúvida, o principal resultado foi passar a impressão de que havia muita reação ao governo Jango e, principalmente, à sua aliança com a esquerda. E essa indisposição havia mesmo, principalmente nas classes médias e altas."
Aquele evento de 19 de março de 1964 e uma série de outros que se repetiram em todo o país até o início de junho tinham em comum um discurso contra o que eles classificavam como "ameaça comunista". No entendimento dos organizadores das marchas, o Brasil sob a presidência de João Goulart, o Jango, estaria na iminência de se tornar um país comunista, principalmente depois do anunciado no Comício da Central, ocorrido em 13 de março daquele ano, em que Jango detalhou um pouco das chamadas reformas de base, assinando dois decretos bastante simbólicos.
O historiador Leonardo Leal Chaves, da Universidade de Coimbra, em Portugal, pontua que a marcha em São Paulo conseguiu reunir um número bem maior de manifestantes do que o Comício da Central, que contou com cerca de 200 mil participantes, de acordo com estimativas.
Para especialistas, tais atos conservadores foram o apoio popular ao golpe de Estado que ocorreria poucos dias mais tarde, em 31 de março. "Sem dúvida, a marcha sustentou o golpe que viria a acontecer", afirma o historiador Victor Missiato, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que pesquisou os acontecimentos prévios ao golpe de 1964.
Missiato avalia que, em comum, aquela série contou com "várias manifestações em diversos locais do país, com apoio de milhares de pessoas, nem todas iguais, mas todas em torno de uma visão conservadora, redentora e, principalmente, de que os militares deveriam intervir na política, na luta, segundo a visão deles, contra o ‘comunismo de João Goulart'".
De acordo com Missiato, ali foi criada a "atmosfera golpista", com forças "dos dois lados esticando a corda da democracia". "No caso da direita, com o apoio do aparato militar, parte da opinião pública e muitos elementos da sociedade civil, sem dúvida. Tiveram mais apoio institucional do que o próprio presidente na época e isso foi base de sustentação do golpe de 1964", afirma ele.
Fé e política
Sobre a marcha em si, Missiato destaca o engajamento da união cívica feminina. Católicos se engajaram principalmente porque viram no discurso de Jango, no comício, uma ameaça à religião. Inicialmente, o nome do ato seria Marcha de Desagravo ao Santo Rosário — mas quando se entendeu que isso excluiria os que não fossem católicos, optou-se por um título mais abrangente.
De qualquer forma, o mote religioso do ato era "família que reza unida permanece unida". "A organização do movimento foi da sociedade civil, mas havia, por trás, dinheiro de grupos de empresários", acrescenta Missiato.
A grande imprensa, em geral, apoiou. "O anticomunismo na mídia era muito presente e se imaginava que fosse necessária a intervenção militar para que os supostos planos golpistas de Goulart fossem evitados", explica o historiador.
Motta acrescenta que o ato em São Paulo serviu de inspiração para outras mobilizações pelo país, voltadas a aumentar a pressão contra os supostos comunistas. Em seu livro Em guarda contra o perigo vermelho — o anticomunismo no Brasil, ele coloca a marcha como "o desdobramento mais importante da reação ao comício [da Central] ".
"A Marcha da Família […] se constituiu em evento de grande impacto em favor da mobilização antiesquerdista. Sua preparação, por sinal muito cuidadosa, reuniu toda a elite paulistana em verdadeira frente anticomunista anti-Goulart, que conseguiu levar para a região da Praça da Sé enorme massa humana", relata o livro. "A importância do ato político pode ser medida num detalhe curioso. O tradicional O Estado de S. Paulo, pela primeira vez em muitos anos, noticiou um acontecimento nacional em primeira página." Naquela época, era praxe o jornal privilegiar notícias internacionais.
O anticomunismo
Motta ressalta que "o caráter anticomunista" do ato foi explicitado pelos organizadores nas acusações de que "os vermelhos" estariam atentando "contra os valores mais caros à tradição brasileira".
O padre Benedito Mário Calazans (1911-2007), senador da República, foi uma das vozes conservadoras no palanque. "Hoje é o dia de São José, padroeiro da família, o nosso padroeiro. Fidel Castro é o padroeiro de [Leonel] Brizola. É o padroeiro dos comunistas. Nós somos o povo. Não somos do comício da Guanabara. Aqui estão mais de 500 mil pessoas para dizer ao presidente da República que o Brasil quer a democracia e não o tiranismo vermelho", disse ele.
"A alta hierarquia da Igreja, empresários, latifundiários e parte da cúpula militar apoiaram a deposição do presidente eleito", ressalta o historiador Paulo Henrique Martinez, da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
"A marcha conseguiu conciliar vários interesses empresariais e religiosos e teve uma repercussão nacional que acabou influenciando bastante os militares a agirem. Vale dizer que houve amplo apoio de setores conservadores da sociedade, inclusive jornais, que conclamavam os militares a saírem às ruas a fim de evitar o comunismo", destaca o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Autor: Edison Veiga