O que é genocídio?

Guerras fazem um grande número de vítimas, e acusação de genocídio costuma surgir em meio a conflitos. Entenda o que dizem as legislações internacional e brasileira sobre o crime.

Por Deutsche Welle

Definido como a intenção de exterminar um determinado grupo de pessoas, o termo genocídio foi cunhado pela primeira vez em meio aos horrores do Holocausto, durante a Segunda Guerra Mundial.

Em 1943, o advogado Raphael Lemkin definiu o conceito – parcialmente em resposta ao assassinato sistemático e em massa de judeus pela Alemanha nazista de Adolf Hitler. Com exceção do irmão, Lemkin perdeu a família inteira no Holocausto.

O advogado polonês e judeu fez campanha para que o genocídio fosse reconhecido como crime pela legislação internacional, pavimentando o caminho para a aprovação, em1948 , daConvenção das Nações Unidas para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio , que entrou em vigor em 1951.

O artigo 2° da convenção define o genocídio como qualquer ação "cometida com a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso".

Segundo a definição da ONU, essas ações incluem:

  • assassinatos de membros de um grupo;
  • infligir sérios danos físicos ou psicológicos a membros do grupo;
  • criar condições que ameacem a vida de membros do grupo, com capacidade de destruí-lo total ou parcialmente;
  • implementar medidas para impedir nascimentos no seio do grupo;
  • e a transferência forçada de crianças para outro grupo.

Quem pode ser processado?

A convenção da ONU estabelece que qualquer um pode ser processado e punido por genocídio – inclusive líderes políticos eleitos.

O Tribunal Penal Internacional(TPI), em Haia, tem um mandato para investigar e processar pelo crime de genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade. Segundo os estatutos do órgão, qualquer um que cometer, ordenar, auxiliar ou até incitar genocídio pode ser responsabilizado criminalmente.

Um tribunal separado, a Corte Internacional de Justiça, também em Haia, lida com disputas entre países e também pode determinar a responsabilidade de Estados por genocídio.

O Brasil tem leis contra o genocídio?

Em janeiro, após um pedido do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, a Polícia Federal (PF) abriu um inquérito para investigar crime de genocídio e omissão de socorro na assistência dada pelo governo federal aos indígenas yanomami .

No Brasil, o genocídio foi definido na lei 2.889, de 1956, que pune o crime no país e o tipifica, no artigo 1°, seguindo as mesmas definições da convenção da ONU. O texto estabelece penas específicas para o crime descrito na convenção internacional. As punições são relacionadas à "intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso".

O texto foi sancionado pelo então presidente Juscelino Kubitschek, quatro anos depois que a convenção da ONU entrou em vigor no Brasil, em 1952.

O artigo 3° da lei de 1956 também prevê punições para quem "incitar, direta e publicamente, alguém a cometer qualquer dos crimes" relativos a genocídio. "A pena pelo crime de incitação será a mesma de crime incitado, se este se consumar", diz a lei. Além disso, "a pena será agravada de um terço (...) quando cometido o crime por governante ou funcionário público".

O Código Penal brasileiro também prevê desde 1984 o crime de genocídio, mesmo que tenha sido praticado no exterior, por cidadãos brasileiros ou residentes no país.

O crime de genocídio foi julgado no Brasil uma única vez, por causa de assassinatos de indígenas yanomami ocorridos em 1993 em Roraima, próximo à fronteira com a Venezuela, no que ficou conhecido como o Massacre de Haximu. O caso chocou a comunidade internacional e resultou na morte de ao menos 16 indígenas.

Dificuldades para provar o genocídio

"Com muita frequência, o termo genocídio é usado pelas pessoas na linguagem cotidiana. Elas se referem ao maior crime, ao mais grave, porque, de alguma forma, [genocídio] soa bem pior do que 'crimes de guerra' ou 'crimes contra a humanidade'", disse, em entrevista à DW, a especialista em direito internacional Valérie Gabard, baseada em Haia.

"Mas, do ponto de vista legal, a definição de genocídio é muito estreita", explicou a cofundadora da consultoria legal UpRights. "Decidir se houve ou não genocídio não é uma questão de números. O principal critério para esse crime é a intenção de exterminar fisicamente um grupo", detalhou.

Especialistas, porém, dizem que provar essa intenção é difícil porque, muitas vezes, não há provas diretas.

"O problema de se provar a intenção genocida é que, provavelmente, não haverá perpetradores presentes no tribunal para admiti-la diretamente", afirmou à DW William Schabas, professor de Direito Internacional na Universidade de Middlesex, em Londres.

"Por isso, os tribunais precisam inferir a intenção dos perpetradores com base na conduta deles, em provas circunstanciais. E a regra é [que as provas apresentadas precisam] ser além da dúvida razoável. É aí que fica mais difícil", constatou.

Demora nos processos

Gabard atuou nos tribunais criminais internacionais para o Camboja, Ruanda e a antiga Iugoslávia e disse que os processos de genocídio podem levar bastante tempo para serem concluídos.

"Demora muito, também por causa da extensão dos crimes", afirmou. "Geralmente, quando se fala em genocídio, há muitas vítimas e demora bastante tempo para investigar os crimes e para provar não somente a intenção de matar, mas [o fato de] matar pessoas por elas fazerem parte de um grupo."

Genocídio ou não?

Nos últimos anos, o termo genocídio foi usado com frequência por líderes políticos para descrever abusos na China, em Myanmar, na Síria, em relação à guerra na Ucrânia e ao atual conflito no Oriente Médio.

Em abril do ano passado, pouco mais de um mês depois do início da invasão da Ucrânia pela Rússia, o presidente dos EUA,Joe Biden , chamou de genocídio as atrocidades cometidas pelas forças do mandatário russo, Vladimir Putin, na Ucrânia. O movimento Fridays for Future causou recentemente indignação ao acusar Israel de estar cometendo "um genocídio contra os palestinos em Gaza" no atual conflito.

Em novembro do ano passado, deputados alemães aprovaram uma resolução que classificou o Holodomor, ou ações do governo soviético que resultaram na morte de milhões de ucranianos entre 1932 e 1933, como genocídio.

Neste mês, os legisladores alemães também reconheceram crimes cometidos pelo grupo terrorista Estado Islâmico em 2014 contra a comunidade curda dos yazidis no Iraque como genocídio.

Em 2021, os Estados Unidos, o Canadá e o governo holandês acusaram a China de cometer genocídio contra a etnia uigur em Xinjang, enquanto vários outros países apresentaram resoluções parlamentares com a mesma acusação.

Porém, especialistas apontam para três genocídios reconhecidos até hoje por um tribunal de Justiça de âmbito internacional: o de Ruanda, onde cerca de 800 mil hutus e tutsis moderados foram mortos no genocídio de 1994; o massacre de Srebrenica, em 1995, que foi definido como genocídio pelo Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia; e os assassinatos cometidos pelo regime comunista do Khmer Vermelho no Camboja contra as minorias vietnamita e a muçulmana cham, nos anos 1970. Entre 100 mil e 500 mil chams, de um total de 700 mil, foram mortos entre 1975 e 1979.

Sobre o genocídio no Camboja, não há unanimidade sobre o fato de muitas das vítimas do Khmer Vermelho terem sido mortas por causa de sua posição política ou social, o que as excluiria da definição de genocídio da ONU.

Em 2010, o Tribunal Penal Internacional emitiu um mandado de prisão contra o então presidente sudanês, Omar al-Bashir, por genocídio, acusando-o de organizar uma campanha contra os cidadãos da região de Darfur.

"Temos a definição legal de genocídio sendo usada em casos na Corte Internacional de Justiça e nas condenações do tribunal de Ruanda. Temos uma lei muito bem estabelecida sobre que é genocídio", explicou Schabas. "Mas, ao mesmo tempo, existe esse fenômeno de tentativas de usar o rótulo 'genocídio', que não corresponde à definição legal de genocídio, seja para os uigures na China, seja para a guerra na Ucrânia."

Autor: Sonia Phalnikar, Renate Krieger

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