Os conspiracionistas alemães que criam filhos nas sombras

Adeptos do movimento extremista Reichsbürger, que rejeita o moderno Estado alemão, evitam registrar filhos em cartório e enviá-los à escola, criando uma sociedade paralela, onde as crianças são doutrinadas desde cedo.

Por Deutsche Welle

O vídeo mostra uma alemã se gabando de que sua filha é "livre". A razão: a menina nunca foi registrada oficialmente. "Por seis anos, ninguém ligou se ela tinha certidão de nascimento ou não." Sem certidão, tampouco frequentou creches ou passou pelos exames médicos de praxe. Para a mãe, isso foi mais uma vantagem, já que assim ela não precisou "ser vacinada". No final, autoridades do estado alemão da Turíngia, onde vive a mulher, acabaram descobrindo a existência da menina após denúncias de vizinhos.

O vídeo foi distribuído pela comunidade Königreich Deutschland (Reino da Alemanha), um grupo que segue a filosofia e teorias conspiratórias do movimento conspiracionista de extrema direita Reichsbürger (Cidadãos do Império Alemão), que nega a legitimidade do moderno Estado da Alemanha e suas instituições.

O Departamento Federal para a Proteção da Constituição da Alemanha, principal órgão de inteligência do país, descreve o Reino da Alemanha como uma "comunidade sectária" e um "Estado de fantasia".

As autoridades calculam que o "Reino da Alemanha" conte pelo menos 6 mil seguidores, alguns vivendo em comunidades organizadas nos estados da Turíngia e Brandemburgo, no Leste alemão. É considerado pelas autoridades como o maior grupo organizado dentro do movimento Reichsbürger, que por sua vez soma mais de 20 mil seguidores.

Famílias Reichsbürger

Segundo a emissora alemã BR, que investigou casos similares nos últimos meses, a mãe da Turíngia orgulhosa de não registrar a filha não é a única na cena Reichsbürger. Historicamente, o movimento costuma atrair mais homens solteiros, mas, segundo a imprensa alemã, nos últimos anos também se mostrado atraente para mulheres, o que favoreceu o aparecimento de "famílias Reichsbürger", com crianças sendo doutrinadas na filosofia e credos do movimento desde cedo.

"Mesmo que houvesse apenas duas crianças, isso já seria um problema significativo", disse à BR o chefe do Departamento para a Proteção da Constituição da Turíngia, Stephan Kramer. Sem poder fornecer cifras específicos, ele revelou que o número de "famílias Reichsbürger" no seu estado está na casa das dezenas.

Vários websites ligados ao movimento Reichsbürger dedicam espaço a tópicos como "educação" ou "infância", para atrair novos seguidores. Canais do Telegram com dezenas de milhares de assinantes incentivam os pais a tirarem seus filhos das escolas públicas e propagandeiam as supostas vantagens de não registrar uma criança.

"Quem tem um bebê por um parto em casa – sozinho – e não o denuncia ao cartório, então essa criança não existe": ela é uma pessoa livre, diz um canal da ideologia conspiratória QAnon, que costuma se entrelaçar com o movimento Reichsbürger.

Pelo credo Reichsbürger, a atual República Federal da Alemanha (RFA) não passa de uma "empresa", uma construção artificial imposta pelos Aliados após a Segunda Guerra Mundial. Segundo essa visão, a única "Alemanha legítima" seria o extinto Império Alemão (1871-1918).

Assim, os seguidores do movimento costumam imprimir seus próprios passaportes e carteiras de motorista com antigos símbolos imperais. Os documentos do Estado alemão moderno seriam uma "assinatura de contrato" com essa suposta "Firma RFA" ilegítima, que acaba reduzindo os cidadãos à condição de "escravos". Portanto, não registrar os filhos em cartório seria um ato de resistência.

Em novembro de 2023, uma reportagem da emissora RBB mostrou o caso de um homem alemão que tentava recuperar sua filha de dez anos, sequestrada pela ex-mulher, adepta do movimento Reichsbürger. Por mais de um ano, a menina não frequentou a escola. "Minha ex-mulher não queria que a minha filha estudasse as matérias escolares, pois as consideravas erradas, por não corresponderem à ideologia que ela seguia", disse o pai à emissora.

Em outro caso, no estado da Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental, historicamente também pertencente ao Leste alemã, uma mulher foi presa por não mandar seu filho de 12 anos para a escola por três anos. Novamente, tratava-se de uma seguidora dos Reichsbürger, que exibia em suas redes sociais antigos símbolos da Alemanha imperial.

Em dezembro, uma reportagem do jornal ND sobre uma comunidade isolada de dezenas de Reichsbürger na Turíngia também indicou a existência de pelo menos duas crianças não registradas entre as famílias adeptas do movimento.

"Como essas crianças vão encontrar seu caminho, quando chegarem à idade adulta, numa Alemanha cuja existência elas aprenderam a negar desde a infância? Quão grande é o perigo de que essas crianças de hoje, em 20 ou 30 anos, liderem uma luta particularmente determinada contra 'o sistema' como 'cidadãos do Reich' independentes?", questionou o jornal.

Ideologia conspiracionista

O movimento Reichsbürger ganhou notoriedade nos últimos anos na Alemanha por diversos seguidores seus terem se envolvido em atos de violência. Segundo pesquisadores, a rejeição da democracia, tendências monarquistas, xenofobia e antissemitismo são traços que os unem.

Adeptos também costumam ser seguidores de outras correntes conspiracionistas, entre elas a crença de que a Alemanha moderna seria uma construção ilegítima, governada por membros de um suposto "deep State" (Estado profundo). Vários são adeptos de teorias conspiratórias do movimento QAnon, para quem as principais instituições de governo do mundo são dominadas por uma elite de pedófilos satanistas. O movimento também ganhou tração durante a pandemia, quando os Reichsbürger passaram a se mesclar com ativistas antivacinas.

Em dezembro de 2022, 3 mil policiais foram mobilizados na Alemanha em uma das maiores operações antiterrorismo da história nacional moderna. Em poucas horas, os alvos foram revelados para a imprensa: 25 indivíduos foram presos por suspeita de filiação a uma organização terrorista e pode planejar um golpe de Estado. Mais três pessoas acabariam presos nos meses seguintes.

Todos foram apontados como suspeitos de participar da rede de extrema direita União Patriótica, estreitamente associada aos Reichsbürger. As autoridades também apreenderam mais de 300 armas de fogo e 150 mil peças de munição. No momento, eles estão sendo julgados por formação de organização terrorista e planejamento de uma ação de alta traição.

As autoridades de segurança estimam que existam 20 mil Reichsbürger na Alemanha, dos quais cerca de 2.300 propensos a cometer atos de violência. Em outro caso notório da Alemanha, em abril de 2022, quatro seguidores do movimento foram acusados de arquitetar um plano para sequestrar o ministro da Saúde da Alemanha, o social-democrata Karl Lauterbach, em protesto contra as medidas impostas pelo governo contra a pandemia. Armas e munições também foram apreendidas na ocasião.

jps (ots)

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