Você está sozinha em uma floresta, você prefere encontrar um homem ou um urso? Essa pergunta circula sem parar nas redes sociais dos jovens da geração Z nos últimos meses. E, antes que você pense: "lá vem outro desafio bobo do TikTok”, preste atenção. A resposta a esse viral joga uma verdade na nossa cara. Nesse cenário hipotético, a grande maioria das meninas responde (sem pestanejar) que tem mais medo de encontrar um homem e prefeririam encontrar um urso.
Sim, na cabeça delas (e quem há de dizer que elas não têm suas razões?) é mais fácil escapar de um animal selvagem do que de um ser humano do sexo masculino.
Os motivos alegados para tal escolha são variados. No TikTok, há uma lista deles: "o urso não me estupraria”, "o urso não falaria que me atacou porque eu provoquei", "as pessoas não diriam que o urso me atacou por causa da roupa que eu estava usando” e por aí vai. Sim, as respostas para o viral viraram manifestações feministas da geração Z na rede preferida pelos adolescentes.
"Cem por cento o urso, o que é algo meio estranho de se dizer”, fala uma das entrevistadas pelo vídeo que tornou a pergunta viral no Tik Tok. Nele, a pergunta é feita para sete mulheres jovens. Oito delas responderam que preferem encontrar o urso.
Alguns poderiam dizer que elas "estão de mimimi” e são loucas, ou bobas (só para citar alguns dos "argumentos” que são usados para descredibilizar mulheres) só que não é bem assim. E muitos homens, inclusive, concordam com elas.
Depois que o dilema "Homem X ursos” passou a rodar nas redes, algumas mulheres resolveram fazer a mesma pergunta para seus parceiros e pais de seus filhos, questionando se eles preferiam que elas ou filhas encontrassem em uma floresta um urso ou um homem. E a maioria deles, homens, também temem mais seus colegas do sexo masculino. Sim, nem o homem confia mais no homem.
Medo de assédio
Essa tendência não é uma pesquisa científica. Mas mostra bem o estado das coisas no que se refere a assédio e violência de gênero. As meninas têm medo de encontrar um homem porque sabem que podem ser assediadas, machucadas e também mortas. E, o assédio, como sabemos, é extremamente banalizado.
Quanto eu era adolescente, morríamos de medo de encontrar um "tarado”. Essa era a expressão usada para designar aqueles sujeitos nojentos que mostravam o pénis para meninas que saíam da escola (de uniforme, olhem o horror), ou para aqueles que "passavam a mão”. Sim, quase toda mulher, principalmente em um país machista como o Brasil, já passou por esse tipo de experiência. Os números mostram isso.
Segundo levantamento de uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, quase metade das brasileiras (46,7%) sofreu algum tipo de assédio sexual no ano de 2022.
As principais vítimas dos assédios nas ruas são as mulheres jovens. Segundo o estudo, na faixa etária entre 16 a 24 anos, 76,1% das mulheres relataram sofrer abuso em 2022. Sim, é assustador.
"Eu prefiro encontrar o urso porque acho que é mais fácil ele me ignorar do que um homem”, me respondeu minha afilhada de 15 anos, me deixando apavorada só de imaginar o que ela e suas amigas já devem ter passado nas quadras de Brasília, onde ela mora.
Não sou só eu que me preocupei com os relatos que estão vindo à tona por causa dessa "trend”. O dilema fez com que a ONU se pronunciasse. Em vídeo publicado nos canais de mídia social, a ONU Mulheres se pronunciou por meio da chefe do departamento pelo Fim da violência contra mulheres e meninas, Kalliopi Mingeirou. Segundo ela, a tendência mostra importantes sinais de como as mulheres não se sentem seguras.
Ela tem razão. E vou além. A "trend” mostra também como o machismo estrutural ainda está presente no mundo em 2024. Afinal, é a sociedade que produz esse tipo de absurdo como homens que assediam menores de idade. Não, isso não é uma questão "biológica”.
Não são os homens que não conseguem se controlar”, isso acontece porque mulheres ainda são tratadas como "coisas”. E não são só os tarados (para usar o termo da minha infância) que são responsáveis por isso, o buraco é muito mais embaixo. E, claro, isso precisa mudar. Não é normal que meninas se sintam mais seguras entre ursos do que entre homens. Humanos do sexo masculino não são animais selvagens. Ou não deviam ser.
_____________________________
Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.
Autor: Nina Lemos