Por um 2024 com menos ódio online

Os casos de PC Siqueira e de Jéssica são diferentes, mas mostram que o ódio online é um caso de saúde pública. E chegamos a um grau de barbárie em que pessoas comemoram alguém morrer de depressão.

Por Deutsche Welle

"É sangue mesmo, não é mertiolate. Todos querem ver e comentar a novidade. Tão emocionante um acidente de verdade. Estão todos satisfeitos com o sucesso do desastre". Essa letra antiga do Renato Russo veio à minha cabeça nos últimos dias de 2023, quando tivemos a notícia de que o youtuber PC Siqueira cometeu suicídio. A tragédia aconteceu uma semana depois de Jéssica Canedo, de 22 anos, que sofria de depressão, se matar após ser envolvida em fake news e receber ataques de ódio nas redes sociais.

No caso do PC, poucos minutos depois da notícia de sua morte, a internet foi tomada por bárbaros que comentavam o "sucesso do desastre". Alguns deles diziam: "Já foi tarde", "O inferno está em festa". "Vai lá encontrar a Marielle" (juro que eu li isso).

PC era uma figura controversa e cativante. E que viu sua vida ruir depois de ser acusado de pedofilia em 2020. Não sou juíza e não estou aqui para dizer se ele era culpado. Mas fato é: a polícia, depois de uma longa investigação, não achou nenhuma prova que o ligasse a pedofilia em seus computadores e celulares apreendidos. Desde então, o youtuber dava vários sinais de desespero nas redes sociais. Muitos torceram por sua morte e depois comemoraram. Triste.

A tragédia de Jéssica

Menos de uma semana antes do PC morrer, já tínhamos assistido, impotentes, a uma das piores tragédias da história da internet brasileira . A jovem Jéssica Vitória Canedo, de 22 anos, que sofria de depressão, morreu depois que uma fake news descarada, que a ligava ao humorista Whindersson Nunes (pessoa que ela não conhecia e com com quem nunca falou) foi publicada por perfis de fofoca.

Após a publicação de um diálogo falso, que foi atribuído a ela e ao humorista, Jéssica disse no Instagram que era vítima de uma mentira, que sofria de depressão. Implorou para que os ataques cessassem. Sua mãe, aos prantos, relatou a luta da filha contra a depressão e implorou para que as pessoas compreendessem e deixassem sua filha em paz. Não deixaram.

Um dos donos do "Choquei", perfil de notícias não profissional com milhares de seguidores nas redes sociais e que publicou a notícia falsa, ainda fez piada dos apelos de Jéssica. "Avisa para ela que a redação do Enem já passou", escreveu no Twitter, se referindo ao "textão" de Jéssica desmentindo a notícia e pedindo socorro. Sim, na internet, muitas vezes, tudo é "textão", "chorume". E se você reclama ainda escuta um: "para de mimimi!". Como manter a saúde mental em um ambiente desses?

O que as redes sociais, que lucram rios de dinheiro com o ódio (que gera muito engajamento) fizeram para prevenir essas tragédias? Nada. Pelo contrário, elas continuam lucrando com o sofrimento das pessoas. Assim como as páginas de fofoca.

Os casos de PC Siqueira e de Jéssica são diferentes e tem suas especificidades, mas jogam na nossa cara o que a gente já sabe, mas faz de conta que não vê: o ódio mata. E chegamos a um grau de barbárie em que pessoas comemoram alguém morrer de depressão.

Internet não pode ser terra de ninguém

O que fazer? Não existe solução fácil, mas os culpados precisam ser responsabilizados. Na sexta feira, a polícia civil de Minas Gerais disse que estava investigando o "Choquei" e outras páginas de fofoca por "indução ao suicídio". É um começo.

Muitos falam que as redes sociais precisam ser reguladas e responsabilizadas. Também concordo. Na Alemanha, inclusive, elas já são, como contei aqui. Por aqui, isso não resolve todo o problema, mas pelo menos coloca alguma ordem nesta terra de ninguém.

No momento em que todos falamos tanto em saúde mental, devíamos pensar também em quanto deve fazer mal para alguém com depressão e ideação suicida ver pessoas comemorando a morte de alguém que lutava contra a depressão. Esse conteúdo deveria estar nas redes sociais? Acho que não.

Quanto a nós, usuários das redes, acho que vale pensar que a vida das pessoas não é uma "fanfic" ou um "meme". São vidas de verdade. E os sofrimentos causados pelo ódio online são reais. Eu fui vítima de ataques virtuais em massa e sei muito bem do que estou falando. Cuidar disso é questão de saúde pública. Dezembro de 2023 jogou tudo isso na nossa cara. Precisamos de um 2024 com menos ódio online.

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Se você enfrenta problemas emocionais e tem pensamentos suicidas, não deixe de procurar ajuda. O Centro de Valorização da Vida (CVV) dá apoio emocional e preventivo ao suicídio. Você pode ligar gratuitamente para 188 ou acessar o site www.cvv.org.br.

Autor: Nina Lemos

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