Primeiro Jornal

Crianças Venezuelanas Waraos no nordeste

Conheça como vivem dezenas de crianças e suas famílias num dos estados mais pobres do Brasil e o que o setor público local, ONGs e associações está fazendo para ajudar

Evandro Almeida Jr, no 1º Jornal

Desde 2016 que o cacique Epifânio Moreno, sua família e seu grupo saíram do Delta Amacuro, no norte da Venezuela, a vida deles nunca mais foi a mesma. Devido a uma crise política e econômica que foi crescendo causada pela morte do presidente Hugo Chávez (2013) milhares de indígenas Warao venezuelanos perderam de um dia para o outro dezenas de direitos e ajudas do Estado. A única saída que conheciam era migrar. Mas para onde? A fronteira mais próxima que conheciam era separada pelo mar entre a Venezuela e o país caribenho Trinidad e Tobago ou por terra na Guiana. Mas em ambos países fala-se inglês… Não era uma boa alternativa -- o português tem mais palavras similares ao espanhol que o inglês, o que facilitou a comunicação . A solução foi descer ao sul mesmo. Jornadas longas os levaram a Amazônia brasileira e dali iniciava uma nova jornada, em um novo país.

Foram mais de 6 mil km da Venezuela até onde se encontram hoje, em João Pessoa, na Paraíba (PB). O grupo de Epifânio é formado por 40 pessoas que dividem um abrigo na capital. Metade delas são crianças, nascidas, em sua maioria, no Brasil. A cidade tornou-se lar. É um dos poucos lugares que ficaram por mais tempo. Estão há 1 ano. 

Antes de chegarem lá, por pelo menos 4 anos ficaram migrando de cidade em cidade e  estado por estado em grupos dormindo nas ruas, rodoviárias ou abrigos improvisados. Epifânio, que teve 9 filhos, hoje tem apenas 8. Um deles morreu de fome durante a migração. São as dores com as quais  quem migra e foge de seu país convive diariamente. Com a voz embargada e cercado por outros filhos pequenos, o cacique lembra dos momentos de dor. “Meu filho morreu de fome porque era muito difícil conseguirmos comida no norte do Brasil. As pessoas simplesmente pararam de ajudar. Sentíamos muita fome”. 

Como líder até mesmo em outras comunidades Warao na Venezuela, Epifânio é um dos poucos que fala fluentemente espanhol. Morou em Caracas e carrega consigo a liderança na busca de melhores condições para sua comunidade. Aprendeu português na marra e é o elo entre os brasileiros e seu grupo.

Em busca de condições melhores foram indo para o leste do Brasil. Entraram no nordeste pelo Maranhão até chegarem na litorânea João Pessoa, na Paraíba, em fevereiro de 2020. O grupo de Epifânio, que já estava há pelo menos 4 anos no país, encontrou com outro grupo de Warao também na mesma situação e juntos se estabeleceram na cidade. 

Com os preços de aluguéis mais acessíveis, eles foram morar na periferia da cidade. Num lugar chamado Vila do Lula. Ali era um grande cortiço, segundo relatos dos moradores do lugar, que muito lembra o livro de Aluísio Azevedo.  Ali eles viviam em condições precárias em quartos apertados e sem espaço de convivência -- algo muito importante para a cultura Warao. Eles saíam de casa para fazer “coleta” -- pedir dinheiro na rua. O que no Brasil pode se encaixar como mendicância, para eles é algo cultural. Arraigado em décadas de precariedade antes de terem auxílios governamentais no país de origem. 

Não muito diferente do resto do Brasil, a periferia trazia consigo a violência. Os Warao não tinham muita noção disso. De um povo da pesca que vivia na floresta, a realidade na qual estavam imersos era algo totalmente diferente. Com troca de tiros, mortes e presença do tráfico de drogas. Até que a notícia de que refugiados venezuelanos indígenas estavam na cidade chegou por meio de uma assistente social. A secretaria municipal informou ao Ministério Público Federal para que pensassem juntos alternativas para acolher esses refugiados e tirá-los desse ambiente. 

“A vila do Lula era um lugar bem estranho para eles. Não se sentiam muito confortáveis com o ambiente. Mesmo tendo liberdade de ir e vir a hora que quisessem e fazer o que bem entendessem, ainda era uma situação de extrema vulnerabilidade”, explica Rita Santos, professora do Programa de Pós-Graduação de Antropologia da Universidade Federal da Paraíba. Ela acompanha os Warao desde sua chegada ao estado.

Criando raízes

Para entender porque estão há mais tempo na capital paraibana é preciso saber quais problemas foram enfrentados nesse caminho. 

A vulnerabilidade é algo que sempre está tentando alcançá-los. Passa pelas pessoas também. Relatos de famílias que viviam em situação de rua em outros estados causaram choque ao Ministério Público. Conselheiras tutelares ameaçavam tomar as crianças das próprias mães. Algumas, recém-nascidas no Brasil, outras, sequer eram brasileiras. Foi necessária a criação de uma cartilha para que essa violência ilegal cessasse.

Durante as travessias, mães, que poucas vezes viajavam sozinhas sem seus maridos, recebiam propostas de compra de seus filhos por parte de brasileiros . Alguns inclusive ainda no ventre da mãe já eram desejados. Relatos de fontes que preferiram não se identificar na capital paraibana afirmam que muitas crianças Warao sequer têm documentos. Isso porque ao nascerem e receberem a Declaração de Nascido Vivo (DN ou DNV) -- documento emitido em três vias pelos serviços de saúde para os partos ocorridos no Brasil, seja em estabelecimentos de saúde ou em domicílios -- na hora de registrar as crianças em cartórios lhe eram negadas a cidadania; porque, segundo eles, os documentos dos pais estavam rasurados ou em “más-condições”. Tornando crianças apátridas, ou seja, não-cidadãos.

Sabendo desse contexto, deixar os Warao e principalmente as crianças em condições mais dignas era algo que preocupava os agentes do estado. Além de regularizar as documentações. Sobre os documentos, ainda ocorre em João Pessoa a falta de registro por parte dos cartórios. Então uma alternativa foi tomada. “Antes esses questionamentos vinham direto a mim no MPF, mas agora já acionam o Conselho Tutelar, que aciona a Defensoria Pública e aí com a determinação em mãos, o registro é feito”, explica o procurador José Godoy.

A resposta para abrigá-los veio por conversa com o Ministério Público Federal (MPF) que ajudou a mediar junto a secretarias do estado e da capital como melhor acolhê-los. “Não podíamos deixá-los na Vila do Lula. Além do risco da violência, não estavam tendo nenhum tipo de atendimento do estado que lhes é permitido por lei. Não só por serem indígenas, mas por viverem no Brasil. Eles não sabiam disso (que tinham direitos)”, conta o procurador José Godoy do MPF-PB.

Uma força tarefa de acolhida foi montada para recebê-los. Isso tudo num período pré-pandemia. A princípio tudo foi montado às pressas, sem muita consulta com as lideranças Warao. O que foi bem na atitude, teve que ser aprimorado com o passar dos meses. Deixá-los em abrigos todos juntos ou aluguéis por família? Qual o bairro ideal? A população irá recebê-los bem? Foram algumas das perguntas que vieram à tona.

As alternativas que se mantêm foram fruto de conversas e mediações da Associação Arquidiocesana (ASA) do MPF-PB e do Observatório de Antropologia da UFPB, todos alinhados com as secretarias estadual da Paraíba e municipal de João Pessoa. 

Uma parceria foi firmada com a ASA para manutenção e cuidado de três abrigos fornecendo também alimentação. Num outro abrigo, a ASA apenas disponibiliza comida, o restante é por conta da secretaria de assistência social de JP. 

Os abrigos nos quais os Warao vivem chocam à primeira vista. O único que a ASA não é responsável pela manutenção é de uma extrema insalubridade. É uma escola desativada da capital onde vive um grupo de 20 Warao. Quatro são crianças. Esse abrigo é do líder Rafael, que estava em “viagem de coleta” durante minha visita. O teto lembra mais uma cachoeira quando chove. O pátio inunda e os indígenas passam a noite secando o chão. Muitas vezes em vão. Conversando com indígenas que vivem ali, e que não quiseram se identificar, eles se preocupam que a qualquer momento pode cair o telhado sobre a cabeça deles. As crianças estão constantemente com coriza devido a esse ambiente úmido e gelado.

Um documento foi escrito pela Pastoral do Imigrante e enviado ao MPF-PB para evidenciar esses problemas. Segundo o procurador da entidade José Godoy, já foi conversado com o grupo para poderem fazer uma reforma. No entanto, os Warao não querem sair, pois temem não poderem voltar ao bairro.

“Eles estão muito acostumados com o bairro. Se dão bem com os vizinhos e têm boa relação com a comunidade. Está sendo uma tarefa difícil convencê-los de sair para fazermos uma reforma. Eles têm medo, e não tiro a razão de que sejam deslocados para outros locais”. Há um embate inclusive da reforma que justifica a apreensão desse grupo em sair do bairro. A escola é de responsabilidade da secretaria estadual de Educação e os indígenas são cuidados pela secretaria municipal de Assistência Social. Esse cuidado duplo,na visão dos Warao que vivem ali, é pra tirar eles do abrigo.

Abrigos ou casas?

Hoje, 30 famílias de venezuelanos indígenas da etnia warao são atendidas pela ASA. Ao todo são 121 pessoas: 59 adultos, 5 bebês, 37 crianças e 20 jovens e adolescentes. Mas esses números mudam a cada mês. É que a migração é tão constante de alguns núcleos familiares que fica difícil até para quem os ajuda saber direito. Isso se dá na grande maioria dos casos pela queda na arrecadação da “coleta”. Eles simplesmente se mudam para outra cidade ou outro estado, ficam três meses e voltam ao abrigo. 

Esses fluxos não são nada controláveis. O dinheiro é a causa. Mesmo que a maioria desses Warao recebam Bolsa Família e Auxílio Emergencial. Alguns além: recebem um cartão de ajuda humanitária da União Europeia no valor de R$ 500. E apenas mulheres com filhos têm direito de receber. Não é suficiente... Comida não falta. Só de frango são 400 kg por semana e mais 120 kg de Tambaqui -- peixe trazido do Pará que eles gostam de comer. 

A vida nos abrigos é de um som alto que é preciso desligá-lo para poder conversar. Quase todas as crianças andam nuas. O ambiente é igual em todos os abrigos visitados. Úmido e em nossa concepção brasileira de limpeza, muito sujo. É resto de comida por toda a casa. Latas de cerveja, garrafas pet e restos de lanches das crianças em cada cantinho. Gregório, que é pai de três crianças, diz que tem muito rato no abrigo dele. Maria Goretti, assistente que me acompanhou nas visitas disse para eu explicar ao Gregório o porquê disso. Já que o portugues é a única língua que ela fala e ele não entende as vezes. Isso se deu dentro de um grande quarto onde viviam 14 pessoas de duas famílias. Uma estava em Montes Claros (MG) e outra em Santarém (PA). Havia três meses que tinham partido. Mesmo assim a sujeira ali permaneceu. Mesmo de bota eu escorregava no chão a ponto de ter que sair para não me machucar.

O lixo como conhecemos é algo que estamos aprendendo a lidar. Colocar num ambiente específico para descartar não entrou ainda na cabeça deles. É como se ainda estivessem na floresta onde podiam jogar um resto de osso e algum animal ou a própria terra absorvesse. Mas na cidade não é assim. O solo é de concreto, a comida apodrece e ratos fazem a festa. E essa prática é passada às crianças... 

O telhado é constantemente limpo porque jogam o lixo ali em cima. Algo que irrita vizinhos. “Muitos vizinhos vieram reclamar das festas deles e principalmente da higiene. Num abrigo já chegaram a jogar restos de comida no quintal do vizinho porque a janela da cozinha era de frente. E tinha uma lixeira do lado. O vizinho ficou extremamente bravo. Além de que isso pode chamar ratos, baratas e escorpiões inclusive no quintal deles”, relata Maria Goretti, responsável da ASA pelos Warao.

Segundo Sebastian Roa, associado Sênior de Proteção e Soluções Indígenas da Acnur, essa percepção de limpeza é algo que precisa ser compreendido. “As pessoas precisam se colocar no lugar delas, é fácil os vizinhos reclamarem, mas eles são povos de outras terras, realidades… Não se muda da noite para o dia. São processos. E se os paraibanos fossem morar no meio da floresta, numa cabana cercada por rios e tendo que pescar tendo vivido toda a sua vida na cidade? Como seriam para eles? É necessário empatia.” 

De acordo com Rita, os Warao entendem os palavrões brasileiros. Segundo eles são as “palavras más” que muitas vezes são proferidas proferida também em direção às crianças “Essa xenofobia é recorrente e aumenta não só por eles serem indígenas, mas também por serem refugiados”. Goretti também acrescenta que “a população dificilmente entende as práticas deles e a saída que encontram é xingá-los”.

Saúde e Educação

A cacica Minerva não esconde em seu sorriso tímido que ainda sente uma dor profunda. Sua filha Alexandrina morreu há um par de meses atrás devido a uma infecção generalizada. Ela estava grávida mas o pequeno Alexandre* sobreviveu e está aos cuidados da avó materna e de seu pai Yohny. O pré-natal é um desafio. “Muitas vezes elas não falam pra nós que estão grávidas, é algo natural. Descobrimos quando há um atendimento médico ou a barriga já está grande. Isso atrapalha o acompanhamento da saúde deles”, explica Maria Goretti. Minerva diz que a filha teve poucos atendimentos médicos enquanto estava grávida. E disse que ela viajava muito. Viajava tanto que os bebês nasceram em outro estado e foram para João Pessoa com poucos dias de vida. “Essa viagem constante atrelada com a falta de acompanhamento médico foi algo que prejudicou e fragilizou a saúde dela ainda mais. Infelizmente faleceram ela e o filhinho”, conta Rita. 

Falta braço para a prefeitura acompanhar a todos. O MPF já solicitou uma equipe específica de cuidados a eles, pois com os Warao é necessário criar confiança. Ao entrevistá-los, nem sequer olhavam para mim, só para aqueles que os conheciam há mais tempo. O repórter era invisível ali. Mas é cultural. E isso é algo que o procurador Godoy luta para conseguir. “Eu não sei porque a prefeitura empaca tanto para separar agentes para eles. São quatro abrigos, três deles muito próximos um do outro. Essa relação é importante para que eles busquem os postos de saúde quando estão mal como qualquer pessoa que more no Brasil. Essa falta de relação atrapalha até mesmo na saúde das crianças.

Numa alternativa de ajudar a prefeitura, uma iniciativa da universidade Unipê na capital visa auxiliar em fichas cadastrais para agentes de saúde acompanharem melhor a saúde das famílias e de cada criança e adulto. Os alunos de medicina do 8º período fazem esse trabalho. “É algo positivo porque nossos alunos conhecem outras realidades e ajudamos no braço mesmo nessas papeladas e atendimentos iniciais”, conta Polyana Montenegro Silva, coordenadora do curso de extensão de medicina da universidade. 

Mesmo assim, a cacica Minerva busca forças para recomeçar. “Sempre foi muito dura nossa travessia aqui. E a capital é um lugar bom. Mesmo com algumas pessoas xingando a gente. Recebemos ajuda e dificilmente nos falta algo. Nós queremos ficar, queremos trabalhar e ter nossa vida aqui. Queremos aprender o português, que as crianças estudem, isso é importante para toda a comunidade.”

Durante o dia as crianças não têm atividades nem aulas. Seu lazer é dentro do abrigo com outras crianças ou fazendo artesanato com suas mães. Em outro abrigo num grande casarão gerido pela cacica Minerva Perez cheguei a encontrar os adultos desenhando numa atividade do Observatório de Antropologia da UFPB. “É que estão escrevendo um livro para contar suas realidades por meio de desenhos”, conta Rita. Mas a molecada toda estava dançando, fazendo a festa, algumas poucas desenhando com os lápis que sobravam.

É comum nos abrigos as crianças andarem nuas, como se estivessem em seu ambiente natural. Devido às imagens pedi que colocassem roupas nelas para não expô-las. Em todos os abrigos é assim. Na capital, a educação é uma luta que quem cuida dos Warao tenta vencer. Devido à pandemia, aulas presenciais ainda são proibidas para ensino fundamental e creche. Aconteceram apenas de forma remota. Mas para crianças que só se comunicam na língua materna e nem sequer falam espanhol ou português foi preferido apenas a matrícula - a alfabetização é preferível, aos olhos dos pesquisadores, acontecer de forma presencial.

Para tentar suprir esse vácuo, o Observatório da UFPB está ajudando os Warao a conhecerem novos materiais para produção de seu artesanato. Isso porque a palha do Buriti que usam normalmente não é encontrada na Paraíba. Apenas na região norte do país. Nesse aprendizado as crianças ganham espaço num projeto coordenado pela professora Rita Santos. “Devido a esses deslocamentos especialmente situados em regiões periféricas, os indígenas não tinham espaço suficiente para poder construir seus artesanatos. Isso prejudica as próprias crianças que perderam o convívio com a prática. Mostrar para elas a importância de sua cultura e que ela é bonita e que deve tê-la consigo é algo que estamos trazendo para elas”.

Neste momento de pandemia apenas adultos têm aulas propriamente ditas. E acontecem a cada 15 dias duas vezes por semana com coordenação da Associação Sal da Terra. Maria José, a Zezinha, é coordenadora pedagógica da associação, ela relata como dão as classes. “Era quase que impossível pensarmos numa sala de aula dentro dos abrigos. E temos o entendimento que temos que buscar tornar aquilo o mais próximo possível do ambiente escolar. Já chegamos a usar a rua como espaço. O diferencial foi uma professora que encontramos que mesmo nessas condições não desistiu de dar aulas. A população é muito preconceituosa, dar aula a elas é uma alternativa que encontramos para inseri-las. Mesmo com alguns não querendo ter aulas, outros saindo para migrar…” E quem pensa que o espanhol foi problema: “Nosso objetivo sempre foi educar pela língua portuguesa, falar, escrever. A relação de amorosidade foi nosso diferencial para serem acolhidos.”

*nome alterado para preservação da integridade do recém-nascido

Esta reportagem recebeu apoio do programa ‘Early Childhood Reporting Fellowship: Desigualdade e Covid-19 no Brasil, Venezuela e Colômbia’, do Dart Center/Columbia University