A decisão de manter o X suspenso no Brasil é mais um capítulo do embate entre o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e o dono da plataforma, Elon Musk. Por trás do bloqueio da rede social, há reiteradas sequências de decisões judiciais contra o empresário e a plataforma expedidas desde abril, quando Moraes incluiu Musk no inquérito das milícias digitais.
Essas decisões incluem investigações contra o X e o empresário por descumprir determinações anteriores para bloquear conteúdos da plataforma. O STF solicitou a derrubada de dezenas de perfis no X, que seriam geridos por pessoas ou empresas com o objetivo de atentar contra a democracia brasileira. O escritório brasileiro do X chegou a alegar não ter responsabilidade pela gestão e administração da plataforma, o que inviabilizaria o cumprimento das decisões da Justiça.
Instaurado em julho de 2021 pelo próprio Alexandre de Moraes, o inquérito das milícias digitais investiga a existência de "uma organização criminosa" de atuação digital com objetivo de realizar ações antidemocráticas.
Para Moraes, o X estaria sendo instrumentalizado pelas milícias digitais, e a conduta da empresa configuraria, além de abuso de poder econômico, uma tentativa de impactar de maneira ilegal a opinião pública e instigar ações criminosas praticadas pelas milícias digitais.
Em abril, Moraes incluiu Musk no inquérito das milícias digitais por suspeita de crimes de obstrução à Justiça, organização criminosa e incitação ao crime. Desde então, Musk passou a fazer críticas públicas ao magistrado na rede da qual é dono, acusando-o de censura.
A maioria das ordens de bloqueio de conteúdos e perfis foi feita de maneira sigilosa, por parte do STF, mas foi divulgada pelos alvos e pelo próprio Musk. Em abril, o Congresso dos Estados Unidos chegou a divulgar um documento com mais de 70 decisões do ministro, parte delas solicitando a retirada de perfis e postagens do ar do X desde 2022.
Os congressistas americanos elencam cerca de 300 perfis alvos das decisões do STF e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), este último à época presidido por Moraes. De acordo com o site Aos Fatos, nem todos os despachos visavam a retirada de conteúdos; ao menos 10 solicitavam a reativação das contas.
A quem pertencem as contas alvo de ordens de bloqueio
No começo de agosto, o STF determinou o bloqueio de pelo menos sete perfis no X, grupos administrados por eles e eventuais monetizações relativas às contas. O bloqueio deveria ser efetuado dentro de duas horas, sob pena diária de R$ 50 mil.
O Supremo também havia solicitado a íntegra dos conteúdos publicados nos perfis e os dados cadastrais. No dia 16 de agosto, após descumprimento do X, a ordem foi reiterada e a multa, elevada. Segundo a corte, os perfis estavam sendo usados para intimidar e expor policiais que participaram das investigações sobre os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.
A decisão de Moraes era sigilosa, mas foi divulgada pelo próprio X, que passou também a divulgar outros documentos sigilosos enviados pelo STF ao longo de todo o mês de agosto.
Um dos perfis que deveria ter sido derrubado é o de Allan Lopes dos Santos, blogueiro bolsonarista e fundador do Terça Livre. Foragido da justiça, Santos é investigado em dois inquéritos do Supremo por ameaçar ministros do tribunal, disseminar conteúdos falsos na internet e financiar atos antidemocráticos. Há um mandado de prisão expedido contra ele desde outubro de 2021. Santos fugiu para os Estados Unidos, e as autoridades brasileiras tentam a sua extradição.
Em março deste ano, ele chegou a abrir uma conta na plataforma de conteúdo adulto OnlyFans, desafiando a Justiça brasileira. A conta de Santos no X permanece ativa no exterior, de onde o blogueiro continua postando, contrariando as determinações do STF.
Outro alvo de ordens de bloqueio no X é o blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio Filho, contra quem há uma ordem de prisão desde dezembro de 2022. Ele pediu asilo na Espanha em junho de 2023, mas já esteve no Paraguai, Argentina e, mais recentemente, na Inglaterra. A conta dele no X segue acessível do exterior, e o blogueiro continua a postar.
Também em agosto foi solicitada a derrubada de perfis nas redes sociais do senador bolsonarista Marcos do Val (Podemos-ES), bem como o bloqueio de R$ 50 milhões de suas contas bancárias. A medida comprometeu o pagamento de salário do parlamentar, mas no fim de agosto Moraes autorizou o repasse de 30% do salário de Do Val.
Em uma publicação do dia 12 de agosto no X, o senador questionou as decisões de Moraes. "Essa decisão, além de inconstitucional, caracteriza-se como um verdadeiro abuso de autoridade, pois não houve qualquer comunicação prévia ao Senado Federal ou ao seu presidente, Rodrigo Pacheco”, disse o parlamentar.
Os perfis do senador no Facebook e Youtube estavam bloqueados desde o ano passado, mas o X continuava ativo. A conta do parlamentar, onde ele tem feito postagens em inglês, ainda pode ser acessada do exterior. Nesta segunda-feira, Do Val fez novas publicações questionando o bloqueio do X no Brasil. "Alexandre de Moraes está usando o Marco Civil da Internet, uma lei de menor escalão, para justificar o bloqueio de ativos e contas de outras empresas", disse.
Outro perfil atingido pelas decisões de Moraes é o do influencer e youtuber Ednardo D'ávilla Mello Raposo, conhecido como Ed Raposo. O blogueiro já foi condenado pela Justiça do Rio de Janeiro por divulgar informações falsas contra o ex-deputado federal Jean Wyllys e por acusar o youtuber Lucas Netto de incitar pedofilia. As últimas postagens do blogueiro no X são do dia 14 de agosto.
Alvos acusam Moraes de abuso de autoridade
Até então, não se sabe ao certo quantos perfis e conteúdos no X Moraes ordenou que o X retirasse do ar. Algumas das decisões ocorrem sem envolvimento e pedidos da Polícia Federal ou da Procuradoria-Geral da República (PGR), o que alimenta críticas de arbitrariedade por parte do magistrado da Suprema Corte.
No passado, Moraes já chegou a solicitar o bloqueio das contas do ex-deputado Roberto Jefferson e dos empresários Luciano Hang, dono da Havan, e José Koury, dono do Barra Shopping. Ambos os empresários recuperaram as contas por ordem de Moraes nesta terça-feira (03/09), após dois anos de bloqueio, mas as postagens que motivaram a ação permanecem inacessíveis.
Além dos nomes mais famosos, as decisões recentes de Moraes relacionadas ao bloqueio do X também atingem perfis menores na rede social e familiares dos alvos principais. Como boa parte dos despachos são sigilosos, os alvos acusam o ministro de censura.
No caso do blogueiro Eustáquio Filho, o STF, por exemplo, também determinou que o X derrubasse as contas da esposa dele, Sandra Mara Volf Pedro Eustáquio, e da filha, uma adolescente de 16 anos. No dia 14 de agosto, a PF chegou a fazer uma operação na casa da família, após Moraes expedir um novo mandato de prisão contra Allan dos Santos e Eustáquio Filho. Na ocasião, mãe e filha tiveram o passaporte apreendido, e a adolescente também teve que entregar o celular aos investigadores. Segundo o ministro, Eustáquio Filho usava o perfil da filha adolescente para publicar conteúdos.
À coluna do jornalista Guilherme Amado, no Portal Metrópoles, Eustáquio disse que a medida "escancarava o abuso de autoridade” por parte do ministro do STF.
A operação da PF tinha o objetivo de desarticular uma estrutura montada para obstruir investigações contra divulgação de dados protegidos e corromper crianças e adolescentes. A ação foi acompanhada pelo Conselho Tutelar do Distrito Federal.
"Perfil em rede social vinculado a adolescente [filha de Eustáquio Filho] realizou postagem alertando para a presença de policiais em sua residência enquanto a adolescente ainda se encontrava sob repouso, indicando sua efetiva utilização por maiores de idade”, afirmou a PF em nota.
Outro perfil alvo de ordem de bloqueio é o do engenheiro Cláudio Luz, à época com 577 seguidores e atualmente com 1.146 seguidores. O perfil permanece ativo para acesso no exterior, e continua a publicar conteúdos. Já a conta do pastor Josias Pereira Lima, também alvo das decisões de Moraes, foi deletada, assim como as contas de Sérgio Fischer e da esposa do ex-deputado Daniel Silveira, Paola da Silva Daniel.
Em publicação do dia 30 de agosto, o X prometeu divulgar todas as decisões sigilosas de Moraes: "Ao contrário de outras plataformas de mídia social e tecnologia, não cumpriremos ordens ilegais em segredo. Aos nossos usuários no Brasil e ao redor do mundo, o X continua comprometido em proteger sua liberdade de expressão.”
Supensão de conteúdos atinge empresas jornalísticas
O documento do Congresso dos EUA afirma que Moraes supostamente ordenou a remoção de postagens e contas mesmo quando "muito do conteúdo não violava as regras [das plataformas]" e "muitas vezes sem dar uma razão". O texto diz que houve uma "censura dirigida", que não é um problema restrito aos governos "em terras distantes" para silenciar críticos.
Moraes também solicitou o bloqueio de contas bancárias da Starlink, outra empresa de Musk. A ação chegou a ser classificada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) como geradora de insegurança jurídica no Brasil.
As decisões de Moraes para exclusão de conteúdos atingem também a própria imprensa brasileira. Em novembro de 2022, o juiz auxiliar de Moraes na época, Marco Antonio Martin Vargas, chegou a determinar a retirada do ar de uma reportagem do UOL sobre vazamentos de dados do ministro em grupos bolsonaristas. O UOL, porém, alega que a reportagem não tinha nenhum dado pessoal do ministro.
Em junho, Moraes mandou retirar do ar dois textos e dois vídeos da Folha de S.Paulo nos quais a ex-mulher de Arthur Lira o acusava de violência doméstica. A medida também afetou publicações da Mídia Ninja, Portal Terra e Brasil de Fato. Na ocasião, o ministro usou os mesmos argumentos com os quais pede a derrubada dos perfis vinculados às investigações das milícias digitais, de que "não há, no ordenamento jurídico, direito absoluto à liberdade de expressão".
A ONG Repórteres sem Fronteiras lamentou a decisão do STF de manter o X bloqueado no Brasil, mas disse crer que a decisão "é justificada em vista da constante recusa da plataforma em responder aos repetidos pedidos das autoridades para cumprir a lei".
A DW procurou o STF, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Autor: Alice de Souza