“A Síria é nossa!” — gritavam os rebeldes islâmicos ao amanhecer do domingo, em Damasco. Davam tiros para o ar, mesmo que proibidos pelo líder al-Jolani.
“A Síria está livre!” — proclamaram rádios e televisões, convidando os milhões de refugiados sírios a voltar à Síria, fim da guerra civil de 13 anos e da dinastia tirânica de 50 anos da família Assad.
“Allah Akbar!” (“Deus é o maior”) — comemoravam civis sírios na Praça das Omíadas, no centro de Damasco, onde mais uma das estátuas de Hafez al-Assad, que governou a Síria por 29 anos, até 2000, foi derrubada e pisoteada. Seu filho, Bashar, brutal ditador durante 24 anos, fugiu num jatinho para um destino incerto.
“O tirano fugiu!” — informaram os rebeldes pela televisão. As portas dos presídios foram abertas, inclusive a da infame Sednaya, onde presos morriam sob tortura. Os soldados fieis ao governo despiram as fardas e se misturaram às comemorações. As forças do Hezbollah e do Irã, que sustentavam Bashar al-Assad, foram embora. Os russos desistiram de uma solução militar: alguns de seus caças levantaram voo apenas uma vez de bases aéreas na Síria, e pausaram.
Em Doha, no Catar, o chanceler da Rússia propôs uma saída política. Os russos, impotentes para mudar o avanço rebelde, convidaram Bashar e sua esposa, Asma, apelidada de “Rosa do Deserto” pela revista Vogue, a voar para Moscou. O ex-ditador sírio é formado em Oftalmologia, em Londres, e sucedeu o pai porque o irmão mais velho, Bassel, morreu em um acidente aéreo em 1994.
O líder da coligação islâmica rebelde deixou seu nome de guerra, Abu Mohammad al-Jolani, e agora é Ahmed Hussein al-Shareh, 42 anos, nascido na Arábia Saudita de pais sírios exilados que voltaram à cidade natal de Deraa, em 1980. Dali ele partiu para o Iraque, onde se juntou à Al Qaeda para lutar contra a ocupação dos Estados Unidos. Ficou vários anos num presídio iraquiana. Ao sair, fundou a Frente Nusra, que evoluiu para o grupo HST, agora transformada a ponto de negar ambições jihadistas globais para se concentrar no governo da “Nova Síria”.
O primeiro-ministro sírio Mohamed al-Jalali combinou com o líder do grupo Hay'al Tahrir al-Sham, HTS (Organização para a Libertação do Levante), al-Jolani, que os prédios do governo não seriam invadidos, nem ocupados, até que transferidos para quem for governar a Síria. O acordo está sendo respeitado.
Com seu nome verdadeiro, camisa de colarinho, al-Shareh avisou que “não há retrocesso possível”. Ele quer apagar a imagem de terrorista da Al Qaeda, a cabeça a prêmio por 10 milhões de dólares, oferecidos pelos Estados Unidos. Em Idlib, onde formou um “Governo de Salvação” para uma população de 4 milhões de pessoas, é raro encontrar uma mulher sem o hijab, o véu que cobre a cabeça das muçulmanas. Mas ele não as obrigou por lei, nem impediu o fumo, nem a música, abrandando o estereótipo de linha dura islâmica.
Lembra um amigo meu libanês, diretor do jornal L’Orient le Jour, Issa Goraieb, que “quando a Síria espirra, todo o Oriente Médio pega gripe”, parafraseando uma frase famosa atribuída ao veterano diplomata Henry Kissinger: “quando a França pega um resfriado, a Europa congela”. Há outro ditado, esse válido para o momento: “Os árabes não podem fazer guerra sem o Egito e nem a paz sem a Síria.” Essa é agora a questão.
O rei da Jordânia, Abdullah II, declarou que vai “respeitar as escolhas do povo sírio”. E enfatizou “a necessidade de proteger a segurança da Síria”. A Arábia Saudita anunciou o apoio ao povo sírio. O presidente francês Emmanuel Macron felicitou “a queda do estado de barbárie”.O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu foi às Colinas do Golã, de onde se avista Damasco em dias sem nuvens, e declarou: “A queda do regime de Assad é uma consequência direta dos golpes que infligimos ao Irã e Hezbollah”. Ele se esqueceu da Rússia, que foi decisiva para manter Bashar al-Assad no poder, com seus bombardeios aéreos devastadores contra as forças de oposição que criaram várias zonas de influência na Síria. Os israelenses anunciaram um confronto com rebeldes que atacaram as forças da ONU em Quneitra. Bombardearam suspeitas fábricas de armas químicas e de mísseis.
O vizinho da Síria que pode se dizer o grande vencedor da conquista relâmpago de Damasco é o neo-sultão turco, o presidente Recep Tayyipp Erdogan. Ele financiou e armou o HTS, dizem até que o comandou no avanço inicial relâmpago contra Aleppo, Hama e Homs, fornecendo imagens de satélite aos rebeldes. Ele está procurando agora a realização de consultas com a Rússia e o Irã para o redesenho do novo Oriente Médio. Os curdos da região autônoma onde estão 900 soldados dos EUA já se dispõem a negociar com Erdogan e com o HTS.
Outro vencedor é o Líbano. Ele está ocupando o lugar da ex-milícia mais poderosa da região, o Hezbollah, com seu exército nacional, e acabando com o braço iraniano interventor na política libanesa. Restará um certo poder político aos eleitos do Hezbollah para o Parlamento. Mas livrar-se da Síria é talvez mais importante. A Síria sempre considerou o Líbano a “Grande Síria”. E cometeu vários atentados mortais contra libaneses proeminentes que se interpuseram à vontade dos Assad, pai e filho.
Na fronteira da Síria com o Líbano, centenas de refugiados sírios já fazem fila para voltar às suas casas. Isso deve se repetir na fronteira turca. O exército libanês reforçou suas patrulhas no Vale de Bekaa. E aviões israelenses bombardearam três vezes um centro de pesquisa em Kafr Sousa, nos subúrbios de Damasco, onde os iranianos fabricavam mísseis.