"Se não houver convencimento, policiais vão evitar câmeras"

Para pesquisador do núcleo de violência da USP, suspensão da obrigatoriedade do uso de câmera corporais em policiais que atuam na Operação Escudo é ruim e atende a pressão do governador Tarcísio de Freitas.

Por Deutsche Welle

A decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo de revogar a obrigatoriedade do uso de câmeras corporais pelos policiais militares que atuam na Operação Escudo é considerada ruim, mas já esperada pelo pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEC-USP), Daniel Edler.

"O caso recente da Baixada Santista é certamente o primeiro grande teste do atual governo do São Paulo nesse tema. O que nós estamos vendo é que as políticas de redução do uso da força e de transparência na ação policial, para as quais as câmeras contribuíam muito, não estão passando nesse teste", afirmou Edler à DW.

Anunciada na sexta-feira passada (22/09), a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo atendeu a um pedido do govenador Tarcísio de Freitas, que se opôs à uma decisão judicial anterior que obrigava os policiais que atuam na Operação Escudo a usar a câmera corretamente sob pena de multa em caso de descumprimento. Iniciada em julho, a operação é alvo de críticas por supostos excessos e abusos por parte dos policiais e já resultou em 28 mortes.

A adoção de câmeras corporais na PM paulistana faz parte do programa Olho Vivo, que entrou em vigor em meados de 2020. Desde então, tem sido elogiado por especialistas em segurança pública que veem na medida uma forma de coibir a força excessiva de policiais durante abordagens e operações.

Em entrevista à DW, Edler comenta que a proposta, apesar da aceitação na alta cúpula da corporação, ainda carece de respaldo entre uma parcela dos policiais, sobretudo aqueles que estão na rua. "É uma ferramenta que realmente aumenta a supervisão sobre a rotina do policial na rua, o que pode trazer mais transparência sobre suas ações, mas também levanta questionamentos sobre o direito à privacidade."

DW: Como você analisa a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que revogou o uso das câmeras na Operação Escudo?

Daniel Edler: Essa decisão é ruim, mas já era esperada devido à pressão do governo estadual. O projeto Olho Vivo foi formulado com um planejamento bem claro, com um cronograma de expansão do sistema, com avaliações periódicas e com transparência. Ao contrário de outros estados em que esse processo se deu de forma atabalhoada, em São Paulo, o Coronel Cabanas, primeiro gestor do projeto, tinha muito conhecimento sobre a ferramenta e teve espaço para pensar e implementar suas ideias.

O projeto passou por uma fase inicial de testes com diferentes equipamentos e, posteriormente, o ex-governador João Doria comprou a ideia. Aí, o projeto foi ganhando escala. Começou com 500 câmeras até chegar às 10 mil câmeras atuais. Mas o Tarcísio, já na campanha, havia dito que as câmeras eram um problema. Antes disso, chegamos a ver alguns casos em que os policiais tentaram burlar os aparelhos, tampando as imagens ao efetuar disparos, por exemplo. Mas o caso recente da Baixada Santista é certamente o primeiro grande teste da gestão do Tarcísio e do Guilherme Derrite [Secretário de Segurança Pública] nesse tema. O que nós estamos vendo é que as políticas de redução do uso da força e de transparência na ação policial, para as quais as câmeras contribuíam muito, não estão passando nesse teste.

Na decisão, o presidente do TJ afirma que o regime de urgência das operações pode ser inviabilizado pela falta de câmeras em algumas unidades da Polícia Militar. Disse também que as câmeras geram alto custo ao estado. Como avalia os argumentos?

Exigir que todos os policiais usem câmera, de fato, pode ser algo difícil de implementar de uma hora para outra. Mas há algo interessante: uma pesquisa da Plataforma Justa com dados da Defensoria Pública do Estado de São Paulo mostrou que mesmo policiais de unidades em que as câmeras já estavam à disposição não fizeram uso do equipamento quando se envolveram em confrontos durante a Operação Escudo.

Então, não é só uma questão ter ou não o aparelho, mas de entender se os policiais vão mesmo utilizar a câmera. A decisão do TJ também cita o alto custo orçamentário, mas a gestão passada definiu um orçamento de R$ 152 milhões para aquisição de câmeras corporais. Esse dinheiro está congelado e não tem sido utilizado. Essa verba poderia ao menos manter o cronograma inicial de expansão.

Há policiais militares que estejam convencidos de que a utilização da câmera é algo benéfico para a segurança pública ou ainda há resistência?

Para termos esse quadro mais claro, precisaríamos que a polícia estivesse aberta a realizar uma pesquisa junto aos policiais, mas eu não sei se isso está sendo feito. O que me parece, é que para a maioria dos policiais a câmera é vista como uma imposição do comando da corporação sobre os praças. É uma ferramenta que realmente aumenta a supervisão sobre a rotina do policial na rua, o que pode trazer mais transparência sobre suas ações, mas também levanta questionamentos sobre o direito à privacidade.

Policiais são filmados enquanto comem, conversam ou vão ao banheiro. É óbvio que podem ser criados protocolos para diminuir esse problema, mas essa ainda é uma preocupação central entre os policiais. Afinal, nenhum trabalhador quer ser vigiado o tempo todo. No Rio de Janeiro, por exemplo, um grupo de policiais mulheres questionou a implementação das câmeras por estarem preocupadas com imagens gravadas nos vestiários. Ainda há dúvidas entre os praças sobre como as imagens serão acessadas, quem pode ver e o que pode ser feito com gravações de momentos e intimidade. Ou seja, há demandas legitimas por privacidade que têm que serem levadas em conta e o caminho de convencimento não é simples.

Não basta publicar uma portaria obrigando a tropa a usar. Se não houver esse trabalho de convencimento, os policiais vão arrumar mil e uma maneiras de evitar o olhar intrusivo das câmeras.

Qual a relação entre o uso da câmera e a diminuição da letalidade policial apontada pelo Fórum de Segurança Pública em julho deste ano?

Há um estudo feito junto à polícia de Santa Catarina que mostra que a câmera pode diminuir a tensão de uma abordagem, evitando que ocorrências de baixa intensidade escalem e se tornem situações violentas. Outro estudo, esse feito por uma equipe da FGV e da USP com a polícia de São Paulo, mostra que as câmeras têm um impacto significativo na redução do uso da força de uma forma geral e, particularmente, no uso da força letal. Ou seja, as evidências apontam que quando o policial grava a abordagem, os números de letalidade caem.

Mas nós não podemos achar que a câmera é uma panaceia que vai resolver todos os problemas. Ela precisa estar inserida em uma ideia de segurança pública mais ampla. Há pesquisas do Instituto Sou da Paz que mostram como comissões externas para analisar ações da polícia têm efeito positivo na redução do uso da força e na responsabilização de agentes. As câmeras só vão funcionar se estiverem inseridas em um contexto institucional voltado para o controle do uso da força e se tiverem respaldo político, tanto do governador quanto do comando da polícia.

Essa rejeição dos policiais de baixa patente pode influenciar as decisões do governo em relação ao uso da câmera?

O Tarcísio foi eleito com a plataforma tradicional da direita de que segurança pública se resume à polícia e de que o problema da criminalidade se resolve com violência policial. Nesse contexto, qualquer ferramenta que traga maior controle da força é vista como um obstáculo. A reação da corporação em relação às câmeras virou ainda uma moeda de troca política.

Quando o governador critica e desmobiliza o projeto das câmeras corporais, ele ganha apoio dentro das forças de segurança. Me parece que o Tarcísio está entre estender a mão para a sociedade civil implementando uma política pública pautada em evidências ou mostrar apoio às reivindicações de alguns policiais, ignorando todos os resultados positivos das câmeras. Até agora, Tarcísio escolheu estender a mão para uma parte da polícia.

Autor: Guilherme Henrique

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