Quando tropas da Coreia do Norte violaram a fronteira que dividia a Península da Coreia desde a Segunda Guerra Mundial, na altura dos 38 graus de latitude norte, em 25 de junho de 1950, o diplomata sul-coreano Rah Jong-yil tinha apenas 9 anos. Ele e sua família enfrentaram mais de dois meses de doutrinação dos invasores comunistas antes de serem libertados.
Agora, quando a Coreia do Sul lembra os 74 anos da guerra na península, que durou três anos, Rah teme que o regime de Kim Jong-un se sinta encorajado com o novo pacto militar firmado com a Rússia, e, por isso, Pyongyang acredite que as nações que estiveram ao lado de Seul em 1950 não se comprometam novamente com sua defesa.
Rah avalia que a situação poderia convencer o líder norte-coreano a se aventurar militarmente mais uma vez para tentar reunificar a Península da Coreia sob seu controle. "A Coreia do Norte avançou tão rápido em 1950, fazendo minha família ficar presa atrás da linha de frente em Busan, no sudeste da península", conta Rah.
"Eu me lembro que eles tentaram nos fazer uma lavagem cerebral sobre como era ótimo o regime comunista no Norte e nos fizeram cantar hinos de louvor a Kim Il-sung. Foi pura doutrinação política", relata o diplomata e agente da inteligência sul-coreana.
Tropas das Nações Unidas, sob o comando dos Estados Unidos, conseguiram reverter o curso da guerra. A família de Rah foi libertada dois meses após ter sido feita refém. O conflito terminou em 1953. Rah diz que o mundo hoje está muito diferente do que era naquela época e que a Coreia do Norte está muito mais poderosa, algo que o preocupa.
"Naquela época, o mundo estava dividido em dois blocos na Guerra Fria e havia um status quo. Hoje, temos uma situação similar de blocos hostis, mas os EUA não desfrutam da mesma superioridade militar que tinham em 1950", pondera Rah.
"A Coreia do Norte tem armas nucleares e mísseis balísticos de longo alcance. A China era primitiva em 1950, mas hoje é uma superpotência com armas nucleares. E a Rússia se tornou recentemente um aliado militar de Pyongyang e firmaram um acordo que diz que eles devem se ajudar mutuamente se um for atacado", acrescenta o diplomata.
Incidentes na fronteira e balões de lixo
Em 20 de junho, soldados norte-coreanos cruzaram a linha de demarcação militar que divide a zona desmilitarizada na fronteira entre os países. Tropas sul-coreanas responderam à provocação com tiros de alerta, e os soldados norte-coreanos se retiraram. Esse foi o terceiro incidente incomum registrado em 11 dias.
Em 21 de junho, Kim Yo-jong, irmã de Kim Jong-un, alertou que o regime poderia lançar mais balões com lixo e fezes humanas em direção à Coreia do Sul. Nesta segunda-feira (24/06), militares sul-coreanos confirmaram que Pyongyang estava lançando novamente balões cheios de lixo.
A Coreia do Sul e seu aliado Estados Unidos não ficaram de braços cruzados diante do aumento das tensões. O porta-aviões da Marinha dos EUA Theodore Roosevelt atracou em Busan em 22 de junho. Washington e Seul realizaram ainda exercícios militares aéreos conjuntos num alerta velado ao regime de Kim.
No entanto, muitos sul-coreanos não conseguem afastar a sensação de que a península está cada vez mais à beira de uma crise, como em 1950. "A situação é extremamente preocupante", afirma Kim Sang-woo, ex-político de esquerda e membro do conselho da Fundação para a Paz Kim Dae-jung. "A grande questão é sobre o comprometimento dos EUA com a segurança do Sul, e, embora eu acredite que podemos continuar contando com Washington, há muitas variáveis sobre como seria esse apoio, principalmente depois das eleições em novembro."
Mudança no balanço militar
Kim Sang-woo também destaca a mudança dramática no balanço militar da península nos últimos 74 anos. "O maior problema é, claro, que o Norte possui armas nucleares e mísseis de longo alcance, e o Sul não tem esse tipo de armamento", ressalta. "Em termos de armas convencionais, o Sul tem a vantagem de possuir um sistema moderno que resistiria bem ao equipamento obsoleto do Norte, mas não sabemos se Pyongyang usaria armas nucleares no caso de um conflito."
Segundo ele, nas últimas décadas Pyongyang tem estado numa posição perigosa, com uma grave má gestão econômica que quebrou o país e deixou a população faminta. Seus aliados, incluindo a Rússia, viraram as costas ao regime após a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a chegada da democracia a muitos países do Leste Europeu.
O investimento no arsenal nuclear trouxe mais dificuldades à população norte-coreana devido às sanções impostas pela ONU, que limitaram as importações. A crise se aprofundou ainda mais durante a pandemia de covid-19.
Na avaliação de Kim Sang-woo, a invasão russa da Ucrânia foi uma bênção inesperada para Pyongyang, com o presidente russo, Vladimir Putin, saindo à procura de apoio – e munição – de regimes que ele podia se dar o luxo de ignorar antes da guerra. O conflito foi reaproximando Moscou e Pyongyang à medida em que o Ocidente intensificava a sanções à Rússia.
Pyongyang nega acusações de fornecer armas
A Coreia do Norte teria fornecido milhões de munições e mísseis de curto alcance para a Rússia, em troca de combustível, alimentos e tecnologia para seus programas nuclear, espacial e de mísseis. O país nega estar fornecendo armas a Moscou.
Durante sua visita recente à Coreia do Norte, Putin assinou com Kim um acordo de defesa, alimentando as preocupações do aumento da cooperação armamentista entre os dois países. O presidente russo também defendeu recentemente a revisão das sanções da ONU impostas a Pyongyang devido a seu programa nuclear.
Em março, a Rússia usou seu poder de veto no Conselho de Segurança da ONU para acabar com o monitoramento das violações de sanções, justamente quando peritos começavam a investigar esse fornecimento de armas.
Um ponto importante dessa aproximação é o pacto de ajuda mútua em caso de ataque. "Kim foi encorajado pelo apoio russo, e nós, sul-coreanos, devemos estar preparados para o pior cenário, embora devamos lembrar que essa é uma relação de desespero para ambos os lados. Mas nós simplesmente não sabemos se Kim acha que é forte o suficiente para atacar, se a Rússia iria apoiá-lo e se ele usaria armas nucleares", avalia Kim Sang-woo, acrescentando que os aliados da Coreia do Sul não devem vacilar.
"Os Estados Unidos, o Ocidente e nossos outros aliados devem continuar fazendo o que sempre fizeram, nos apoiando, e alertando a Coreia do Norte sobre o que iria acontecer no caso de uma guerra na península. E se Putin mandar mais armas para a Coreia do Norte, temos que mandar mais armas para a Ucrânia. Não há alternativa", destaca.
Autor: Julian Ryall