"O que está acontecendo aqui?", perguntou, confuso, um turista no Portão de Brandemburgo. Seu choque faz sentido. Para quem não sabe o que está ocorrendo na Alemanha deve ter sido absolutamente surreal ver a multidão que andava no centro político e histórico de Berlim no último domingo (21/01). As milhares de pessoas iam para uma manifestação gigante contra o fascismo, mais especificamente contra o partido de ultradireita Alternativa para Alemanha (AfD). Segundo os organizadores, só em Berlim, éramos 350 mil pessoas. A polícia fala em mais de 100 mil.
As ruas estavam lotadas. Os transportes públicos, idem. Na área perto da estação central de trens da cidade, uma ponte precisou ser fechada por excesso de gente e risco de pânico. O ônibus que peguei para ir à manifestação estava absolutamente lotado. Algumas pessoas carregavam cartazes. Pela janela, vimos uma multidão nas ruas indo em direção ao local da manifestação.
A amiga com quem eu iria me encontrar me mandava mensagens: "não consigo entrar no metrô, está cheio demais". Ela precisou esperar uns quatro trens passarem e descer longe do nosso local de encontro, já que a estação estava fechada por "excesso de gente".
A impressão: "todo mundo saiu de casa". Isso é exagero, claro. Mas o número continua sendo surpreendente. Se os organizadores estiverem certos, o número de pessoas nas ruas da capital equivaleria a cerca de 10% da população da capital alemã. Se aplicássemos essa proporção a São Paulo para efeito de comparação, é como se o número de pessoas nas ruas correspondesse a 1 milhão e meio.
Posso garantir porque estava lá: não lembro de ver tanta gente em uma manifestação em Berlim antes. Tudo fica ainda mais chocante (no bom sentido) quando pensamos que os organizadores esperavam cerca de 1 mil pessoas.
As manifestações contra a AfD se espalharam por todo o país depois que a editora de jornalismo investigativo Correctiv publicou uma reportagem na qual informou que membros da AfD teriam participado de uma reunião com extremistas de direita que discutiu a deportação em massa de centenas de milhares de imigrantes. Até aqueles que possuem cidadania alemã, o que é totalmente inconstitucional.
Só durante o último fim de semana, foram mais de 1,4 milhão de pessoas nas ruas. E em geral acontece do mesmo jeito: muito mais gente aparece, surpreendendo os organizadores e a polícia.
Em Munique, no sábado, a manifestação precisou ser interrompida porque os organizadores esperavam um número modesto de pessoas e apareceram cerca de 80 mil, segundo a polícia. Os organizadores falam em 250 mil. Uma semana antes, o mesmo aconteceu em Hamburgo, quando entre 50 mil pessoas (segundo a polícia) a 100 mil (de acordo com organizadores) compareceram a uma manifestação na qual eram esperadas 10 mil pessoas.
"Todos juntos contra o fascismo"
Na frente do Parlamento (onde eu e minha amigas conseguimos entrar com muito esforço, já que está absolutamente lotado), a multidão grita "alle zusammen gegen den Faschismus" (todos juntos contra o fascismo), "Ganz Berlin hasst die AfD" (toda Berlim odeia a AfD) ou "Ganz Berlin liebt Demokratie" (toda Berlin ama democracia.).
Outra coisa surpreendentemente: os presentes não são apenas pessoas de esquerda que costumam ir a esse tipo de evento, mas muita gente idosa, famílias inteiras e muitos pais com crianças e até bebês pequenos. Os slogans contra o fascimo estão em milhares de bocas.
O clima nas manifestações é de empolgação e surpresa. "Eu queria dizer para vocês que somos 350 mil pessoas aqui! Isso é inacreditável, muito obrigada a todos vocês", disse ao fim da manifestação de domingo uma das organizadoras do protesto. Muitos aplausos e sorrisos se seguiram à declaração.
Estar no meio dessa multidão é reconfortante, principalmente para nós, que somos imigrantes. É bom poder gritar "alle zusammen gegen den Faschismus" acompanhados por uma multidão, especialmente depois de lermos sobre os planos de deportação em massa.
Apesar da AfD atualmente ser o segundo partido com mais intenções de voto na Alemanha de acordo com algumas sondagens, não acho que eles farão parte do governo federal.
Minha moderada "segurança" se deve ao fato de, na Alemanha, o sistema de governo ser o "parlamentarismo de coalizão", o que significa que os radicais daAfD precisariam se aliar a outro partido para poder governar, uma opção que, com a intensificação das manifestações, parece cada vez mais difícil.
Na Alemanha, existe uma expressão chamada Brandmauer, que significa "muro de contenção", um acordo entre os principais partidos para que a AfD fique isolada e não consiga governar. O risco desse muro quebrar quando tantos cidadãos vão às ruas fica menor.
"Wir sind die Brandmauer" (nós somos o muro de contenção), gritava a multidão na noite fria de domingo.
Acho que somos mesmo.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.
Autor: Nina Lemos