Uma fábrica de chocolate itinerante pela Amazônia

Projeto de instituto busca capacitar comunidades tradicionais para agregar mais valor a produtos da floresta. Objetivo a longo prazo é instaurar fábricas acessíveis e de baixo custo.

Por Deutsche Welle

Em um campo cercado de mata em uma pequena comunidade extrativista no coração da Amazônia, três domos geodésicos alimentados por energia solar abrigam uma iniciativa inusitada: um laboratório de produção de chocolates finos. O Laboratório Criativo da Amazônia (LCA) é um projeto operado pelo Instituto Amazônia 4.0 que roda a região preparando algumas comunidades tradicionais para a produção de derivados do cacau e do cupuaçu a partir de princípios sustentáveis. A ideia é funcionar como um protótipo de biofábrica, que capacite a população e teste a viabilidade de um novo modelo de negócio para essas localidades.

Essas populações amazônicas vendem quase exclusivamente matéria-prima como commodity, e a riqueza gerada a partir da industrialização dessas mercadorias acaba não chegando até elas. São regiões que estão entre as de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, mas praticam uma subsistência que mantém a floresta em pé. Assim, o projeto busca aproveitar a cultura de não desmatamento e ao mesmo tempo permitir que essas comunidades melhorem sua qualidade de vida, beneficiando-se da elaboração de produtos com mais valor agregado.

"Temos bolhas de prosperidade aqui e ali, mas a Amazônia como um todo ainda é uma região que tem condições quase de guerra em termos de flagelo humano. Há exclusão de energia, de saneamento, de assistência médica, como vimos na tragédia dos Yanomâmis", explica Ismael Nobre, diretor executivo do instituto.

A pequena fábrica itinerante estreou em outubro deste ano na reserva extrativista Tapajós Arapiuns, e os próximos destinos serão o assentamento de reforma agrária dos anos 80 PA Moju 2, a comunidade quilombola Moju-miri e a comunidade ribeirinha de Acará-açu, estas duas últimas próximas a Belém, Pará. A proposta do projeto é experimentar o laboratório em três tipos de comunidades amazônicas típicas: quilombolas, ribeirinhos e moradores de reservas extrativistas.

Do cacau e cupuaçu às saborosas barras de chocolate

A primeira parada do laboratório foi a reserva extrativista Tapajós Arapiuns em Surucuá, a seis horas de barco da cidade de Santarém. A economia da comunidade é ligada à venda de polpa de cupuaçu e cacau, feita por meio de duas associações e uma cooperativa. Dez membros de cada uma dessas entidades participaram da capacitação pelo período de seis semanas, nas quais colocaram em prática o processo de fabricação do chocolate e cupulate (chocolate feito a partir do cupuaçu), e receberam aulas sobre a comercialização e gestão de negócios.

A produção de cacau para chocolate fino acontece em poucos locais da Amazônia e foi o grande potencial identificado pelo projeto para gerar forte retorno econômico. "Fizemos um rigoroso estudo entre os anos de 2018 e 2020 e avaliações mercadológica das cadeias de valor e dos processos de fabricação do chocolate e do cupulate no país. O cupuaçu é subutilizado na Amazônia e o cacau é usado de uma maneira abaixo do potencial: amêndoas de baixa qualidade e venda como commodity para fora da Amazônia", explica Ismael.

Durante o curso, os participantes fazem a prototipação 3D dos produtos, podem desenhar e criar uma barra única, com orientação de chocolateiros profissionais e o desafio de colocar sua autoria no trabalho. "Trouxemos três representantes dessas comunidades para uma semana em uma base em São Paulo, para visitar grandes e pequenas fábricas de chocolates e ter a oportunidade de viver esse mundo. Antes do laboratório começar, eles trabalharam junto conosco, testando e validando ideias. Isso é importante para que a mudança chegue nas comunidades como algo deles", explica Ismael.

O diretor executivo do projeto aponta que a agregação de valor é vinte vezes maior: em vez de vender por cerca de 10 reais o quilo de cacau e cupuaçu, a comunidade poderia vender a 200 reais o quilo de chocolate.

As fábricas possíveis

A atividade industrial na Amazônia é uma tarefa árdua. A região tem um histórico de falta de energia – recurso caro e inconstante, que depende muitas vezes de geradores a diesel para funcionar por poucas horas do dia. Apesar da abundância de água doce, a água potável é escassa e, além disso, existem os desafios de comunicação e logística. Produzir com um padrão de qualidade nessas condições pode parecer impossível. Mas existe um fator que promete ser um divisor de águas: a tecnologia.

"Antes seria uma utopia querer uma economia de valor agregado na Amazônia, dado as dificuldades intrínsecas à região. Mas as tecnologias da 4ª revolução industrial tornaram isso possível, são recursos que surgiram nos últimos 20 anos e que fazem toda a diferença", expõe Ismael. A energia solar tem se tornado cada vez mais barata e eficiente, filtros para água também tornaram-se mais acessíveis e avançados e redes de satélite recentes permitem que a internet no meio da floresta seja tão boa quanto em uma cidade.

O padrão de qualidade segue sendo um grande desafio. "Existe uma indústria incipiente tentando fazer produtos de valor agregado na Amazônia, mas sofre muito com qualidade. Um dia você pode experimentar um produto, e na próxima vez não vai nem reconhecer. São muitas variáveis difíceis de controlar".

Mas a automação e sistemas de sensores e computadores inteligentes podem mudar esse quadro. Máquinas que antes eram de responsabilidade do operador, hoje funcionam sozinhas e obtêm excelentes resultados. "Um dos segredos para o bom chocolate é a torra do cacau. Então desenvolvemos um forno que automatizou a ponto de você poder colocar uma curva de torra e ele faz sozinho exatamente aquilo. Fizemos isso para várias outras máquinas", explica Ismael.

Essa automação permite que pessoas sem habilidades específicas possam trabalhar em pé de igualdade com fabricantes com maior qualificação. "Queremos abrir a possibilidade de muitas pessoas participarem, para isso é preciso baixar a régua, retirar exigências", defende Ismael. "Fomos assistidos pelos melhores chocolateiros, engenheiros de software, engenheiros mecatrônicos. Colocamos todo mundo pra re-estudar o processo de produção tendo como pano de fundo as comunidades da Amazônia. Comunidades com características de isolamento, de falta de acesso à escola e à formação profissional."

E depois? A busca por um novo modelo

O objetivo do Laboratório Criativo é criar condições para uma mudança permanente. O passo seguinte seria a introdução das "biofábricas 4.0", versões maiores dos laboratórios, no mesmo estilo autossuficiente e de fácil montagem, mas com maior capacidade de produção. "Na Amazônia não dá para querer copiar estrutura de outros lugares. Fundação de concreto, por exemplo, é muito caro. Nossas fábricas de pequena escala já chegam prontas, em duas semanas de instalação já podem funcionar. Não adianta fazer modelo inviável pelo preço."

O laboratório que percorre a Amazônia atualmente é uma semente para esse sonho maior. "As comunidades já vão ter prototipado antes desse investimento. Não adianta ter uma fábrica maior e eles não saberem como fazer, se vai ir bem no mercado. Precisam adquirir know-how no laboratório", esclarece Ismael.

A intenção é que no futuro as biofábricas operem no domínio da "economia real", enfatiza Ismael. Ou seja, que não sejam casos isolados impulsionados quase de forma artificial por doações, mas investimentos viáveis e lucrativos, que partam do engajamento e apropriação das próprias comunidades. "Existem muitas doações de ONGs e do Fundo Amazônia, mas elas ainda não são capazes de mudar o modelo econômico como gostaríamos. Estamos trabalhando com a perspectiva de que fabricar esses produtos gera bastante dinheiro. Quem está fazendo isso hoje está ganhando bastante dinheiro, só vai mudar o operador."

O diretor do instituto ressalta que o investimento inicial da fábrica poderia contar com apoio de três diferentes tipos de capital: privado, filantropia e recursos governamentais. "Temos uma consultoria fazendo o projeto executivo e plano de negócio dessas biofábricas. A projeção é de que o capital investido vai pagar pela fábrica toda em 3 a 4 anos de operação. Um retorno muito razoável, muito de mercado", expõe Ismael.

O modelo concebido é voltado sobretudo para o empreendedorismo cooperativado associativista. "É uma forma de fazer negócio que dialoga muito mais com o interior profundo da Amazônia do que o modelo do empresário individual, que é mais urbano", aponta. A ideia é que qualquer comunidade tradicional possa ter uma dessas fábricas, que funcionariam como um serviço, não como posse. "O que existe atualmente para agregar valor à manufatura é feito a partir de altos investimentos. Você tem dois ou três lugares florescendo, enquanto a comunidade do outro lado do rio continua muito pobre."

O diretor destaca que existem muitas pessoas que querem investir na Amazônia, mas não têm onde colocar o recurso, por falta de transparência e confiança. Um diferencial trazido pelas biofábricas seria a rastreabilidade de ponta a ponta, que traria segurança ao investidor. "Quem investir poderá saber o lugar da floresta em que foi colhido aquilo, saber quais as pessoas que trabalharam no processo, toda rota que o produto fez e receber relatórios de parâmetro de qualidade da produção."

Descentralização e acesso a mercado

Uma questão fundamental da nova perspectiva de negócio é: para quem vender os produtos produzidos? "Queremos pequena escala de produção e isso não alimenta uma economia. Você não consegue chegar com uma pequena quantidade num mercado. Uma rede de supermercados não pode comprar só 300kg de chocolate, por exemplo, eles nem fazem negócio." A lógica de fornecimento do comércio foi um dilema para a concepção do projeto, que prevê pequenas fábricas, mas precisa de certa escala para acessar compradores.

A solução encontrada é de juntar as produções de diversas comunidades. "Na área dos ribeirinhos, existem milhares de famílias morando na beira do rio. Pode-se ter todo aquele rio produzindo uma marca. Digamos que cada núcleo produza 50 kg de chocolate por dia, mas serão 20 núcleos produzindo, assim funciona", propõe Ismael.

Essa é mais uma transformação que a tecnologia tornou possível. Com a produção parametrizada e rastreada e o auxílio das plataformas de comércio eletrônico, a escala e o acesso à mercados tornam-se mais amplos. "Antes do comércio digital, nem me proporia a esse projeto, mas agora estamos diante de uma grande disrupção, de oportunidades de negócio nunca vistas antes."

Autor: Valentina Gindri

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