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Governos não atenderam necessidades de jovens durante a pandemia, diz estudo

Consórcio internacional mostra que menores terão consequências duradouras

João Videira (Sob Supervisão)

Crianças no ambiente escolar durante a pandemia da Covid-19
Crianças no ambiente escolar durante a pandemia da Covid-19
Reprodução/Prefeitura de Jundiaí

As necessidades de crianças e jovens durante o período de isolamento social na pandemia da Covid-19 ficaram de fora das prioridades dos governos de três países, segundo aponta uma pesquisa inédita. Mais longe da escola, os menores estiveram expostos a intempéries como a insegurança alimentar, falta de saneamento e privação do direito de brincar. 

Elaborado por um consórcio global de universidades, liderado pela University College London, o relatório teve a participação da Universidade de São Paulo (USP) e denuncia a lentidão dos governos do Brasil, Reino Unido e África do Sul. Os pesquisadores apontam o erro de não considerar o grupo como prioridade ao expor lacunas políticas nas medidas para frear os efeitos da dissipação da Covid-19 sobre os jovens e crianças.

"Uma quantidade significativa de financiamento público foi alocada para despesas emergenciais durante a pandemia. No entanto foi insuficiente e mal direcionado em alguns casos", diz trecho do relatório.

No Brasil, o estudo contou com a participação de Leandro Giatti e Luciana Bisotto, professor e doutoranda da Faculdade de Saúde Pública da USP. Giatti explica que o problema acentuou mazelas já existentes no país.

"No contexto da pandemia nós podemos verificar que vários problemas que os jovens periféricos e mais humildes enfrentavam se exacerbaram e se sobrepuseram."

"Remontou a dificuldade que esses jovens periféricos já tinham por não contar com acesso à internet e não ter dispositivos eletrônicos de qualidade pra poder passar pro modo de estudo on-line. Então tudo isso dificultou e sobrepôs eh uma condição de vulnerabilidade, dificuldade de acesso. Mas claro os jovens foram e buscando também alternativas pra superar suas dificuldades."

A pesquisa afirma que o novo modelo remoto trouxe inseguranças para professores e alunos, que, por vezes, nunca tinham antes experimentado. Por muito tempo afastados do ambiente escolar tradicional, os menores tiveram que contar com a ajuda das famílias para acompanhar as tarefas, já que país adotou o modelo por, aproximadamente, 40 semanas. Entre os mais pobres, o cenário foi ainda mais devastador. 

À medida que a educação aconteceu cada vez mais de forma online, o estudo cita um aumento da evasão escolar, retrato da exclusão digital que o país já vivia, especialmente em domicílios com acesso insuficiente à internet. Em São Paulo, por exemplo, em 2020, o município anunciou um programa para distribuir tablets. No entanto, os aparelhos só começaram a ser enviados aos alunos em 2021, um ano após o anúncio, de forma desigual, e com diversas limitações de acesso à internet e vulnerabilidades de proteção de dados.

O problema não ficou restrito ao Brasil. No Reino Unido, apesar dos esforços do governo em oferecer computadores e Internet para famílias carentes, 28% dos alunos permaneceram sem acesso adequado à rede durante a pandemia.

Lauren Andres (UCL Bartlett School of Planning), coordenadora da equipe internacional, acredita que, apesar das diferenças entre os países, é perceptível a semelhança nas desigualdades.

"Quanto mais você olha para famílias vulneráveis, para menores vulneráveis, mais se acumulam preocupações, questões de saúde, socioeconômicas. Sãp questões essenciais", afirma.

"Apesar de assumirmos que as respostas seriam diferentes, o que nós vimos nos três países foi que crianças em vulnerabilidade sofreram com a pandemia, também. Isso porque o efeito está conectado com os problemas socioeconômicos que eles tinham anteriormente", completa.

O consumo de alimentos também é apontado como outra agravante. No Brasil, boa parte dos jovens e crianças, especialmente aqueles em situação de vulnerabilidade, dependem das escolas para se alimentar. Sem acesso ao ambiente escolar, aqueles que tiveram condições recorreram aos ultraprocessados. Prato cheio para o agravamento da obesidade, recorte da pesquisa. 

Para Luciana Bisotto, a investigação ilustra o problema.

"A pesquisa mostra que o principal eixo de ação das comunidades organizadas no primeiro ano da crise da pandemia foi no combate à fome. E algumas dessas iniciativas incluíram também a distribuição de orgânicos. Lembrando que nos territórios em condições maiores de vulnerabilidade urbana muitos deles se alimentam mais de produtos ultraprocessados e menos nutritivos e com o fechamento das escolas políticas importantes pra garantir segurança alimentar e nutricional desses grupos como o PNAE tiveram uma ação muito descoordenada e frágil de manutenção".

Após deixar oficialmente o mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2014, o Brasil ainda é classificado como em transição nutricional. No entanto, a gravidade da situação é escancarada, sobretudo, pelo crescimento do problema, em contrapartida à redução das taxas de subnutrição.

Ao analisarem os esforços em mitigar o novo problema brasileiro, os pesquisadores perceberam a descontinuidade de políticas para fortalecer a segurança alimentar, antes desenvolvidas no país através de programas como o Fome Zero, o Bolsa Família e o Programa Nacional de Alimentação Escola (PNAE).

Citados como direitos constitucionais, a brincadeira e o lazer também tiveram declínio durante o isolamento social. Os pesquisadores dizem que o uso do espaço público para as atividades deu lugar a limitações dentro de casa, o que culminou com o aumento do uso de apps e games. No entanto, o problema é estrutural. Dados do relatório apontam que apenas 40% dos prédios de pré-escolas brasileiras possuem playgrounds, dessas, 33% têm espaço aberto.

Com as principais lacunas definidas, o grupo elencou uma série de recomendações. Para Lauren Andres, UCL Bartlett School of Planning, coordenadora da equipe internacional, é preciso que crianças e jovens se façam ouvir.

"O que dizemos no nosso relatório é que nunca podemos ignorar suas vozes e seus direitos. Esse é grande fracasso da Organização Mundial da Saúde e dos governos. Em pensar que eles poderiam ficar de lado já que não eram grupo de risco", diz.

Agora os pesquisadores partem para novas fases da pesquisa, que incluem entrevistas com agentes que trabalham com jovens em comunidades periféricas, questionários qualitativos e oficinas participativas de diálogos com os menores e instituições. No Brasil, as conversas serão com jovens de Paraisópolis e Heliópolis.

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