Apesar da origem humilde, venci o desafio e me formei na USP

Colei grau após jornada acadêmica cheia de reprovações, notas baixas e tentando conciliar a vida com a faculdade. Isso não significa que serei profissional pior que meus colegas.

Por Deutsche Welle

Há alguns dias colei grau como bacharel em economia pela USP, a melhor universidade da América Latina, e certamente minha jornada na graduação não foi linear.

Escrevo com o objetivo de tentar ser o porta-voz daqueles que simplesmente não se formam no período ideal, que são reprovados em uma ou mais disciplinas e que precisaram se esforçar para aprender coisas tão básicas quanto escrever um e-mail para algum professor.

Minha jornada rumo ao ensino superior e até mesmo durante a graduação foi meio solitária. Não me refiro à ausência de amigos ou colegas, pois fui muito sortudo em sempre ter incríveis pessoas por perto, mas de uma solidão diferente.

Sabe aquela oriunda do abismo entre a vida que vivemos e a que a nossa família vive? Aquela que faz com que nossas conquistas não sejam tão comemoradas ou validadas quanto gostaríamos? Bom, me senti assim quando compartilhava com a minha família conteúdos que eu estava aprendendo ou quantidade de acertos nos vestibulares e eles não entendiam. Me senti assim também quando compartilhei minha aprovação, minhas conquistas acadêmicas e até mesmo a minha colação. Havia, sim, parabenizações e uma certa felicidade, mas não como a que eu via das famílias de meus colegas. Comigo era sempre uma felicidade pontual e rapidamente trocada por praticamente qualquer outro assunto. Pouco a pouco, fui parando de compartilhar boa parte daquilo que eu interpretava como conquistas.

Origem diferente

Nos primeiros dias de contato com a turma, ficou muito claro que a minha origem era muito diferente da dos meus colegas. Foi curioso, pois durante toda minha trajetória escolar (ensino fundamental, médio, cursinho e curso técnico) era, sim, comum eu cruzar com uma ou duas pessoas que eu pudesse chamar de "ricas”. A maioria era como eu: baixa renda e passava dificuldades muito parecidas às minhas. Já na universidade pública, a composição do cenário mudou completamente: um ou dois eram como eu, e todo o restante de origens totalmente opostas da minha.

Esse contraste, sobretudo no início, mexeu muito comigo e, consequentemente, com o meu rendimento. Ouvia os colegas falarem sobre os restaurantes que iam e que eu sabia que nunca poderia ir. Ouvia eles falando sobre as viagens para o exterior, sonho esse que eu mesmo ainda não realizei. Me lembro de um dia em que o ônibus que operava para o meu bairro não faria o trajeto. Por qual razão? Tinha havido um homicídio lá. Naquele dia me encontrei na universidade, às 22h30, sem saber como eu iria embora, e me doeu saber que eu era o único com aquela preocupação.

Confesso que precisei lutar contra o sentimento da inveja. Na verdade, me machucava muito sentir resquícios desse sentimento, e eu me punia por isso. Não queria me tornar uma pessoa injusta ou amarga, mas era difícil saber que basicamente todas as nossas diferenças se originaram simplesmente por termos nascido em realidades diferentes.

Na universidade, é comum nos comunicarmos com os professores via e-mail. No entanto, este formato de comunicação não é usual para pessoas de origens como a minha, e vejo isso muito bem nos alunos da rede pública com quem tenho contato atualmente. Me enxergo neles. Eu tive muita dificuldade em saber escrever e-mail para me comunicar com meus professores. Não sabia como escrever, qual linguagem utilizar ou como enviar. Fui sortudo por não ter sido rudemente advertido por nenhum deles, mas conheço pessoas que não tiveram a mesma sorte, e isso dói. Nos faz questionar se merecemos mesmo estar naquele lugar.

Não demorou para eu notar e sentir dificuldade também com outras questões. No primeiro semestre, lutei para ser aprovado em todas as disciplinas, mas foi reprovado em cálculo 1. Foi engraçado, pois muitos colegas que viviam em festas ou em viagens foram aprovados, e lá eu entendi: simplesmente não tínhamos a mesma base. Na verdade, vou além: eu não sabia nem estudar da forma como eles sabiam e foram treinados a vida toda.

Jornada cheia de desafios

Hoje digo sem vergonha ou qualquer resquício de constrangimento: a reprovação em questão estava longe de ser a única ou a última da minha jornada. Hoje consigo olhar o quadro geral, e todas essas reprovações não foram necessariamente por dificuldades com os conteúdos, mas sim dificuldades na base e por preocupações externas à universidade.

Era um tanto quanto difícil para mim viver a vida universitária padrão: lutar para ter as melhores notas, participar de toda a vida social, lutar para ter o melhor estágio, o melhor intercâmbio e me formar com o histórico sem qualquer nota baixa ou reprovação. Não consegui fazer isso. Simplesmente não foi possível, pois trabalhei em uma ação social de educação, da qual sou o fundador, durante toda a graduação.

No dia 29 de setembro deste ano, tive a oportunidade de colar grau. Sendo honesto, temia que esse dia nunca chegasse.

Eu me formei cerca de dois anos mais tarde do que deveria. Tive uma jornada acadêmica repleta de reprovações, de notas baixas e marcada pelos desafios oriundos entre conciliar o mundo externo à universidade com o mundo acadêmico.

No entanto, embora talvez esteja escrevendo isso munido do otimismo por ter me formado muito recentemente, não me arrependo de nada. Não fui o melhor aluno ou o mais acadêmico e se eu pudesse voltar eu nem tentaria ser. Eu simplesmente não podia ser mais um fazendo exatamente o que a maioria já fazia.

Querem saber? Isso não significa que não aprendi os conteúdos, que não dei valor ao privilégio que tive ao ingressar na USP e nem que serei um profissional pior do que meus colegas. Afinal, tenho o exato mesmo diploma que eles e entendo que notas altas ou se formar no período ideal não são as únicas métricas possíveis para sinalizar um bom aluno ou um possível bom profissional. Eu fiz tudo o que eu podia dentro do possível das minhas condições e é isso o que importa.

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Vozes da Educação é uma coluna semanal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do programa no Instagram em @salvaguarda1

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

Autor: Vinícius De Andrade

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