Uma das mais populares canções brasileiras de todos os tempos, o samba Aquarela do Brasil destaca de modo ufanista a natureza, o povo e as tradições culturais do país. Composto em 1939, é a pedra fundamental do subgênero conhecido como samba-exaltação, justamente por esse aspecto laudatório.
A obra é de Ary Barroso, compositor mineiro nascido há exatos 120 anos, em 7 de novembro de 1903, na cidade de Ubá.
"As canções de Ary Barroso, sobretudo os sambas-exaltação, oferecem uma imagem grandiloquente da natureza brasileira e do povo miscigenado", avalia o sociólogo Rogério Baptistini Mendes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Entregam ao ouvinte a ideia de um país alegre e exuberante, em festa consigo mesmo."
Para especialistas, a exportação de Aquarela do Brasil contribuiu para vender ao mundo uma imagem estereotipada do país. A canção tornou-se internacional após entrar na trilha do filme de animação Alô, Amigos, lançado em 1942 pela Disney.
E nisso reside uma certa ironia. Como diz Mendes, "é possível conjecturar que o sucesso internacional" de Aquarela do Brasil se deva àquilo "que nela não é o autêntico nacional". No caso, o cinema hollywoodiano. Para ele, a canção ajudou a difundir "o Brasil com Z". Naquele contexto de Segunda Guerra Mundial, essa narrativa conquistava o mundo porque parecia "uma visão do paraíso", afirma.
"País do futuro"
Na carreira internacional, a canção se tornou "um samba diferente daquele tocado nos morros, com predomínio de cordas e sopros". "Uma música ressignificada para os novos tempos, para a identidade que se queria difundir", avalia o sociólogo.
"O Brasil escravocrata e agroexportador do final do século 19 então realizava o milagre do desenvolvimento econômico e social. Sem traumas, sem violência racial", comenta ele, sobre a mensagem propagandeada na época. "Era, de fato, o país do futuro, como anunciou [o escritor] Stefan Zweig. E essa era uma bela imagem."
No livro Samba e Partido Alto: Curimbas do Rio de Janeiro, a historiadora Denise Barata ressalta que os cantores dessa época resultaram "de uma ideia de Brasil que precisava ser divulgada no exterior: a ideia de um país mestiço".
Ela contextualiza que esses músicos atuaram como instrumento de construção da identidade nacional, mas houve um custo: o samba original, de matriz africana, baseado na percussão, acabou ganhando um sotaque europeu, tanto no canto quanto nos instrumentos utilizados e até mesmo na melodia.
Especialista em projetos culturais e coordenadora do curso de Cinema e Audiovisual na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Gisele Jordão destaca que Barroso "contribuiu para a construção da imagem do Brasil no mundo ao promover uma visão positiva e exaltada do país".
"Suas músicas, muitas vezes, destacavam a exuberância natural, a cultura e a alegria do Brasil, o que influenciou a percepção internacional sobre a nação", comenta ela, frisando que Aquarela do Brasil foi "especialmente eficaz nesse sentido".
Além do importante papel da Disney na divulgação de Aquarela do Brasil, Barroso contou também com o fato de que a canção acabou sendo gravada por muitos expoentes da música, de Frank Sinatra a João Gilberto. "Além disso, ela foi associada a eventos importantes, como a Copa do Mundo de 1950, que ocorreu no Brasil, ajudando a consolidar sua posição como um hino não oficial do país", lembra Jordão.
Mendes acrescenta que a música de Barroso foi a primeira brasileira "a ser ouvida nas rádios dos Estados Unidos".
Quem foi Ary Barroso
Talento precoce, o compositor já trabalhava como pianista em um cinema aos 12 anos. Começou a compor aos 15 e mudou-se do interior de Minas para o Rio aos 17.
Começou a cursar direito, mas a boemia venceu — reprovado, decidiu abandonar a faculdade no segundo ano. Em seus primeiros anos cariocas, ganhou a vida tocando em cinemas, teatros e orquestras. Retomou o curso superior e acabou se graduando em 1929, sem nunca abandonar a música.
Foi no final dos anos 30 que começou a se tornar mais conhecido como compositor. Nas décadas de 40 e 50 teve muitas canções levadas ao cinema, sobretudo na voz de Carmen Miranda. Ela gravou 30 músicas de Barroso, o que faz dele o artista com mais composições apropriadas pela famosa cantora.
"A obra de Ary Barroso expressa um momento do Brasil, em que se transitava à modernidade urbana e industrial e se buscava uma identidade nacional e popular. O samba, em fusão com os meios da cultura de massas, sobretudo o rádio e o cinema, foi a base para essa mudança", pontua Mendes. "Logo depois, as vitórias no futebol criaram a imagem de um país mestiço e alegre, capaz de reinventar a sua história e se apresentar ao mundo com outra face, esquecendo o horror da escravidão e do latifúndio."
Barroso morreu em fevereiro de 1964, de cirrose hepática, em decorrência dos muitos anos de alcoolismo. Deixou um legado de cerca de 300 composições. "Sua música muitas vezes abordava temas patrióticos e exaltava a cultura e a beleza do Brasil. Além disso, Ary Barroso também compôs músicas em outros estilos, como samba-canção e marchinhas de Carnaval", analisa Jordão.
Ufanismo do Estado Novo
Pelo caráter ufanista, críticos costumam associar a obra de Barroso às campanhas nacionalistas do chamado Estado Novo, o período ditatorial de Getúlio Vargas no comando do país.
"A música e a religiosidade popular dos homens negros e pobres, clandestinas desde a reforma urbana do Rio de Janeiro, no início da República, foram edulcoradas na fórmula de Ary Barroso. Um Brasil para olhos estrangeiros. O que não significa, entretanto, que o compositor não tenha sido um grande brasileiro e honesto em seu amor pelo povo e pela gente. O que ele, de fato, foi. Mas os contextos pesam", comenta Mendes.
Jordão pontua que Aquarela do Brasil refletiu "o ufanismo que era inerente ao tempo em que foi composta", momento em que Vargas "buscava promover uma imagem positiva do país". Por isso, não escapou das críticas, já que era vista por muitos como uma apologia governista. "Ele [Barroso] tinha a intenção de deixar um legado para as futuras gerações com suas obras, um marco mais expressivo da brasilidade", afirma a especialista.
Mesmo isso não livrou Barroso de ter de se entender com o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão censor do Estado Novo. "A ideia de retratar o país como 'terra de samba e pandeiro' ofendia a nação que se queria fazer moderna e abandonar estereótipos construídos durante os séculos de escravidão, dentre os quais a indolência e a malandragem", explica o sociólogo Mendes.
Autor: Edison Veiga