Crise hídrica global ameaça mais de metade da produção de alimentos

Relatório considerado histórico pede ações urgentes em nível mundial, alertando para efeitos de uma persistente má gestão dos recursos hídricos somada às mudanças climáticas.

Por Deutsche Welle

Crise hídrica global ameaça mais de metade da produção de alimentos
Sensor evita desperdício de água na irrigação
Divulgação/Embrapa

Mais da metade da produção mundial de alimentos pode estar em risco até 2050 se medidas urgentes contra a crise global de água não forem adotadas, alertou um grupo de líderes e especialistas em um relatório publicado nesta quinta-feira (17/10).

"Quase 3 bilhões de pessoas e mais da metade da produção mundial de alimentos estão agora em áreas onde o armazenamento total de água tende a diminuir", diz o relatório produzido pela Comissão Global sobre a Economia da Água (GCEW, na sigla em inglês).

Intitulada A economia da água: valorizar o ciclo hidrológico como um bem comum global, a análise alerta que a crise hídrica pode levar a uma redução média de 8% no Produto Interno Bruto (PIB) em países de alta renda até 2050 e de até 15% em países de baixa renda.

Os declínios econômicos seriam consequência "dos efeitos combinados das mudanças nos padrões de precipitação e do aumento das temperaturas devido às mudanças climáticas, juntamente com o declínio do armazenamento total de água e a falta de acesso a água limpa e saneamento".

A GCEW considera que "a utilização destrutiva da terra e a persistente má gestão dos recursos hídricos se juntaram ao agravamento da crise climática para colocar o ciclo global da água sob uma pressão sem precedentes".

Em hidrologia, o chamado ciclo da água ou ciclo hidrológico refere-se à troca contínua de água entre a atmosfera, a água do solo, águas superficiais, subterrâneas e das plantas.

"Pela primeira vez na história da humanidade, estamos desequilibrando o ciclo global da água. Já não podemos confiar na chuva, a fonte de toda a água doce, devido às alterações climáticas e de uso da terra causadas pela humanidade, que prejudicam a base do bem-estar humano e da economia mundial", afirma Johan Rockström, diretor do Instituto de Potsdam de Pesquisa sobre Impactos Climáticos (PIK) e um dos cinco copresidentes da GCEW.

Relatório "histórico"

A Comissão Global sobre a Economia da Água foi criada pela Holanda em 2022, com base no trabalho de dezenas de cientistas e economistas de renome, com o objetivo de formar uma visão abrangente sobre o estado dos sistemas hidrológicos globais e sua gestão.

O relatório de 194 páginas publicado nesta quinta é o maior estudo global a analisar os vários aspectos da crise da água e sugerir soluções. O documento, que a comissão classifica de "histórico", argumenta que as abordagens existentes ocasionaram a crise da água, por não levarem em conta o seu valor para a economia e a preservação dos ecossistemas.

Embora a água seja frequentemente percebida como "um presente abundante da natureza", o relatório enfatiza que ela é escassa e cara para transportar.

Em julho de 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu o direito de todas as pessoas ao acesso a água suficiente para uso pessoal e doméstico, o que equivaleria a entre 50 e 100 litros por dia. A GCEW, no entanto, afirma que essa quantidade foi subestimada e sustenta que "uma vida digna – incluindo nutrição e consumo adequados – requer um mínimo de cerca de 4.000 litros por pessoa por dia".

Água como bem comum global

Os especialistas apelaram para que o ciclo da água seja considerado um "bem comum global", o que exige uma "colaboração através de fronteiras e culturas", e para uma transformação na governança da água em todos os níveis.

"Os custos envolvidos nessas ações são muito pequenos em comparação ao dano que a inação contínua causará às economias e à humanidade", destacaram os especialistas.

Para enfrentar a crise, é necessária uma "nova economia da água", baseada num "pensamento mais ousado e integrado e numa reformulação da estrutura das políticas", defende a comissão.

"Só podemos resolver esta crise se pensarmos em termos muito mais amplos sobre como governamos a água. Reconhecendo as interações da água com as alterações climáticas e a biodiversidade. Mobilizando todas as nossas ferramentas econômicas e financiamento público e privado para inovar e investir na água. Pensando e agindo multilateralmente", resume outro copresidente da GCEW, o líder de Singapura, Tharman Shanmugaratnam.

Do fim de subsídios a dietas de origem vegetal

Entre outras medidas, o documento da GCEW defende a eliminação de subsídios prejudiciais em setores de uso intensivo de água. "Precisamos vincular a precificação da água a subsídios apropriados", disse Ngozi Okonjo-Iweala, Diretora-Geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) e copresidente da GCEW.

A primeira missão, segundo a comissão, deverá ser o lançamento de uma revolução nos sistemas alimentares, o que incluiria o uso da microirrigação (técnica de irrigação que consiste na aplicação de água de forma precisa e controlada) na agricultura e a mudança progressiva "de dietas de origem animal para dietas de origem vegetal".

A GCEW recomenda também que sejam conservados e restaurados habitats naturais essenciais para preservar a umidade nos solos e plantas, que retorna e circula pela atmosfera e gera chuva.

"Nenhuma comunidade ou economia será poupada"

O relatório apela ainda pela proteção dos mais pobres e vulneráveis. "A crise global da água atinge primeiro, e de forma mais dura, os mais vulneráveis. Mais de mil crianças com menos de 5 anos de idade morrem todos os dias por causa de água imprópria e falta de saneamento", diz o relatório.

"No entanto, nenhuma comunidade ou economia será poupada das consequências de um ciclo da água desregulado — resultado de nossas ações coletivas ao longo de décadas. O mais perigoso é que falharemos no combate às mudanças climáticas se falharmos na gestão da água", alerta o texto.

lf/cn (AFP, Lusa, ots)

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