Condições exaustivas de trabalho, em um clima extremamente agressivo como o do Golfo Pérsico, têm sido apontadas como uma das principais causas de morte de operários nos canteiros de obras da Copa. Em Doha não raro as temperaturas ultrapassam os 40°C, com sensação térmica no verão de mais de 50°C. O Jornal da Band foi ao Nepal para ouvir as famílias de operários que morreram no Catar nos últimos anos.
Sakhil Saphi vai a um discreto cemitério muçulmano uma vez por semana. Mesmo com o fim das monções, ele teme que a chuva possa destruir a simplória sepultura onde o irmão mais velho foi enterrado há pouco mais de dois meses.
Com as mãos, tenta repor a terra que foi levada pelas águas em direção ao pequeno lago que abastece os campos de arroz dessa região do Nepal, que faz fronteira com a Índia. A pouco metros dali, ainda está a caixa de madeira e metal na qual ele trouxe o corpo do irmão do Qatar, morto subitamente aos 26 anos de idade.
"Eu não sei o que aconteceu. Eu estava trabalhando naquela noite, também estava no Catar", diz Sakhil Saphi. "Me disseram que ele jantou e foi descansar no carro, no pátio do seu trabalho"
Sakhil conta que já era manhã quando recebeu uma ligação dizendo que o irmão estava morto.
"Me lembro de ter ficado bravo, não acreditei e achei que estavam fazendo uma piada comigo. Então me disseram para ir ao hospital. Cheguei lá e vi seu rosto imóvel. Eu perdi meu chão. Meu irmão era o pilar de nossa família, era como se fosse meu pai."
O atestado de óbito do governo do Catar diz que Jamsed Saphi, um jovem saudável, morreu de parada cardíaca provocada por causas naturais.
Mais de mil mortos
Os índices de morte por ataque do coração entre operários nepaleses no Catar são incrivelmente altos. Segundo dados do próprio governo do Nepal, mais de mil operários nepaleses morreram na sede da próxima Copa do Mundo por parada cardíaca ou causas naturais nos últimos 12 anos. Algo como metade de todos os trabalhadores do Nepal que perderam a vida nos canteiros de obra do próximo Mundial.
Prakashi Regmi é um dos mais conceituados cardiologistas do Nepal, com mais de 30 anos de experiência. Ele tem acompanhado o aumento das mortes dos operários nepaleses nos países do Golfo Pérsico nos últimos 20 anos.
"Eu acredito que muitas dessas mortes tem sido classificadas como parada cardíaca, mas que na verdade tem outras causas", afirma. "Eu não acredito que esses jovens estejam morrendo no Catar por causas naturais. É possível que haja casos de mortes por doenças cardíacas, mas não nesse volume."
Urmila Devi Sah chora a morte do marido. “Sempre que eu lembro do meu marido eu não consigo impedir que as lágrimas caiam dos meus olhos. ”Ele era tão bom, sua voz, seu jeito, era tão doce. Nós nos dávamos muito bem, nunca brigava comigo. Nunca foi agressivo."
Ram Narayan tinha 43 anos e morreu como muitos nepaleses morrem no Catar. "Me disseram que ele passou mal e os amigos o estavam levando para o hospital. Ele morreu lá e os documentos dizem que foi uma parada cardíaca por causas naturais."
Por conta disso, a empresa que contratou Ram se recusou a pagar qualquer compensação à família.
"A empresa nunca nos deu dinheiro algum. Agora sobrevivo com o que ganho com um pequeno mercadinho, é o que tenho para sustentar dois filhos e duas filhas."
Sem investigação nem indenização
No ano passado, a Anistia Internacional divulgou um longo estudo sobre a morte dos operários nepaleses e de outros países asiáticos no Catar durante as obras da Copa do Mundo. Chegou à conclusão de que o país sede do mundial não se preocupa em descobrir o que realmente está causando a morte dos operários
Asmita Sapkota, coordenadora da Anistia Internacional no Nepal, explica: "Na verdade não há investigação porque eles simplesmente emitem os certificados de óbito mencionando causas naturais ou paradas cardíacas. E nos sabemos que essa não pode ser a causa dessas mortes. É um problema sério e o Catar deveria fazer mais esforços para solucioná-lo"
Asmita, como todos que estudam essa questão, também suspeita que o pouco esforço na busca por respostas mais concretas tenha razoes financeiras. Registrar a causa das mortes como natural evita que empresas contratantes se responsabilizem por compensações financeiras às famílias dos empregados mortos.
"Como as mortes não são investigadas ou explicadas, as famílias não recebem nenhuma compensação pela perda de seus entes", diz.
Foi assim também com o filho de Sukhi Mukhia, esse agricultor que vive do trabalho nos arrozais das terras baixas do Nepal.
Jit Narian foi para o Catar seguindo os passos dos amigos do vilarejo. Como todos que fazem essa viagem, precisou pegar um empréstimo para pagar a passagem e as taxas de recrutamento.
"Prometeram que ele ia trabalhar como pintor, mas ao chegar lá o colocaram para trabalhar duro na construção."
Morto de cansaço
Há um ano, o velho agricultor recebeu uma ligação: seu filho estava morto. "Até hoje não sabemos o que aconteceu. Seu colega de quarto nos ligou e disse que ele havia morrido."
A morte, segundo o atestado de óbito, foi por problemas estomacais e uma parada cardíaca. Para Sukhi, o filho morreu de cansaço. “Ele foi traído, o trabalho era muito difícil.”
A família jamais recebeu qualquer apoio da empresa.
Sakhil Saphi se considera um homem de sorte. Não trabalhou nos canteiros de obra, como seu irmão. Era funcionário de uma cozinha, mas sua rotina de trabalho talvez ajude a explicar porque tanta gente, tão jovem, morre de forma repentina.
"No começo, eu trabalhava 16 horas por dia. Depois, consegui reduzir para 14 horas e recentemente eu consegui fazer uma carga de 12 horas por dia, porque era experiente".
Sahil conta que foram poucos os dias de folga que teve durante os dois anos em que trabalhou no Catar.
"Nos temos só uma folga por mês, mas a gente quase sempre trabalhava nos dias de folga para ganhar uns 50 rials a mais no fim do mês" (50 rials equivalem a R$ 70).
De acordo com A Anistia Internacional, a média salarial dos operários nepaleses no Catar gira entre R$ 1,1 mil e R$ 1,4 mil.
Apesar de tudo, Sahil quer voltar para o Catar.
"Eu ja entrei numa escola, mas nunca estudei. Desde pequeno eu trabalho. E não há muito trabalho aqui. Preciso voltar."