Esportes

O que Corinthians e os mascotes mineiros têm a ver com a Semana de Arte Moderna

Especialistas explicam ligação do futebol brasileiro com o modernismo e o movimento antropofágico

Helvidio Mattos, do Band Esporte Clube

Será que existe uma relação entre o Theatro Municipal de São Paulo e um estádio como o Pacaembu? O que a Semana de Arte Moderna teria a ver com a história do futebol?

“O futebol e o modernismo se desenvolvem concomitantemente ao longo da primeira metade do século 20 no Brasil. E os dois refletem o movimento de modernização da cultura brasileira, um movimento de modernização da sociedade brasileira”, explica o professor Marcelino Rodrigues, da UFMG.

A partir de maio, a exposição “22 Em Campo”, no Museu do Futebol no Pacaembu, irá celebrar o centenário da Semana de Arte Moderna ocorrida no Theatro Municipal, em fevereiro de 1922.

“[A ideia da exposição] É trazer essas datas, 100 anos atrás e agora, para colocar em campo, para pensar e discutir qual foi o legado daquele momento em que o modernismo, digamos, nasceu no Brasil, e o futebol estava surgindo”, afirma o curador da exposição, Guilherme Wisnik.

“Àquela altura, a maioria dos clubes importantes do Brasil já existia, mas estavam no começo. Ainda se discutia se o futebol seria amador ou profissional... Nesse arco de 100 anos, onde chegamos agora aqui, como podemos ver essa relação”, completa Wisnik.

O que pretendiam os modernistas?

Segundo Rodrigues, o projeto modernista era “construir uma cultura, uma arte, uma linguagem autenticamente brasileira a partir das nossas tradições culturais, a cultura popular, em contraposição a uma cultura beletrista, importada da Europa”.

E o futebol com isso? Para Wisnik, é ele, que se tornaria o esporte mais popular do Brasil, que “explicita de uma maneira muita mais evidente essa vocação do modernismo”.

Quem se interessa pelo movimento modernista no Brasil provavelmente ouviu falar do Manifesto Antropofágico de Oswald Andrade. Mas o documento só foi publicado anos depois da Semana de Arte Moderna.

“O Manifesto Antropófago é só de 1928, mas qual é ideia da antropofagia de Oswald? A de que a cultura brasileira, sento potente, deve olhar para fora, mas não deve copiar. Deve deglutir, assimilar, tomar para si a qualidade daquilo e devolver”, explica o curador.

Foi o que aconteceu, por exemplo, com as expressões em inglês relacionadas ao futebol.

“Os brasileiros antropofagizam essa linguagem esportiva importada da Europa e a transformam em uma expressão da nossa identidade cultural”, diz Rodrigues.

Quando o futebol se tornou profissional no Brasil, abriu-se o caminho para que homens negros, trabalhadores das fábricas, pudessem atuar pelos clubes. Nasceu, então, uma nova forma de jogar.

“Essa nova forma mais lúdica, mais livre, mais criativa, ela é própria de um país que, como queriam os modernistas, se mostrou um país mestiço capaz de fundir aas diversas culturas numa forma nova de cultura que veio a ser o futebol brasileiro”, afirma Wisnik.

Modernismo e os mascotes

O ideal modernista influenciou até mesmo na criação de mascotes de clubes de futebol

A raposa do Cruzeiro, o galo do Atlético-MG e o coelho do América-MG nasceram do olhar do chargista Fernando Pieruccetti para o mundo do interior de Minas Gerais. Desse modo, a raposa surgiu através dos fundadores do Cruzeiro, então Palestra Itália.

“Eram os italianos e descendentes de italianos que se estabeleceram em atividades comerciais, industriais e manufatura. Eram espertos nas negociações, nos bastidores do futebol. Então a raposa é o Cruzeiro por conta dessa esperteza dos italianos”, diz Rodrigues.

“O Atlético é o galo como uma referência ao aguerrimento, à raça que o time tradicionalmente já demonstrava. Mesmo antes do Pieruccetti criar o galo, a torcida já cantava ‘carijó’ para o Atlético, como uma referência às cores da camisa listrada de preto e branco”, ressalta o professor da UFMG.

Já a explicação para a origem a relação do coelho com o América é mais difícil de ser estabelecida, como diz Rodrigues.

“O coelho tinha a ver um pouco com os dirigentes do América, que tinham esse sobrenome. Ele dá uma justificativa, que combina com o espirito fagueiro do América. Acho que é mais difícil de pegar uma relação tão clara”, completa.

Corinthians modernista

A Semana de Arte Moderna também chegou ao Corinthians. Até agosto, a exposição “Paulista 100” homenageia a conquista do Campeonato Paulista de 1922.

“O Corinthians entrou nesse Campeonato Paulista com o peso que era o seguinte: quem fosse campeão nessa edição do Paulistão seria o campeão do centenário da independência brasileira”, lembra Fernando Wanner, historiador do Corinthians.

A conquista, agora centenária, se espalha por uma sala do Memorial no Parque São Jorge.

Além da coincidência de ter sido campeão no mesmo ano da Semana de Arte Moderna, e ao longo de sua história ter se transformado em um dos dois clubes mais populares do país, o Corinthians ainda guarda relações mais concretas com o modernismo.

A primeira ligação direta com o modernismo pode ser lida em um dos cartazes na frase dita pelo poeta Menotti Del Picchia.

“O Menotti Del Picchia era um corintiano associado ao clube, poeta, jornalista, e ele já sentia profundamente o que significava o Corinthians para a sociedade”, diz Wanner, que cita um episódio de 1922.

“No dia 15 de fevereiro de 1922, ele [Menotti Del Picchia] sobe ao palco do Theatro Municipal, completamente lotado, com grande parte da ocupação com grandes figuras da elite paulistana. Quando ele fala que o Corinthians é um fenômeno sociológico a ser estudado em profundidade, isso causou um alvoroço, entre vaias e aplausos”, completa o historiador.

Nasce o novo escudo do Timão

Outra ligação está na definição do pintor Francisco Rebolo, como o modernista corintiano, e também na tela de sua autoria, onde ele aparece atuando pelo Corinthians durante os anos 1920.

“Essa tela ["Futebol"] representa o derby. Ele até provoca o Palestra Itália, que não aceitava negros. Imagina fazer uma provocação, botando um jogador negro vestindo a camisa do Palestra. É um quadro histórico sobre o negro no futebol”, observa Wanner.

“Futebol”, de Francisco Rebolo

O famoso distintivo também tem a mão do corintiano modernista.

“Existiu um artista chamado Scafanhask, que em 1926 teve a ideia de colocar dois remos e uma âncora no distintivo do Corinthians”, conta.

“Quando a diretoria do clube, no fim do anos 1930, decide homenagear o remo ¬– o Corinthians era conhecido como campeão na terra e no mar –, a diretoria convida o Rebolo para redesenhar o distintivo. E ele era um corintiano de alma”, continua o historiador.

“Ele absorve esse esboço do Scafanhask e dá sua impressão genial de arte em cima do distintivo. Cria uma simetria perfeita, uma peça única, e o clube usa essa referência para bordar nas camisas em 1940. Cria uma identidade única, automaticamente se torna o distintivo oficial do clube”, narra Wanner.

O quadro “Operários”, da modernista Tarsila do Amaral, é uma obra importante para a cultura popular do Brasil. Entre seus muitos significados pode ser encontrado o que une modernismo e futebol.

“O que a gente vê naquela pintura? Vários rostos de frente, atrás chaminés de fábrica com fumaça. É um cenário urbano industrial e um mosaico da população brasileira. Você tem ali pessoas brancas, negras, pardas asiáticos... Um mosaico pluriétnico do Brasil com acento social, que a gente pode pensar também como sendo uma espécie de arquibancada de estádio de futebol”, observa Wisnik.

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