O partido francês Reunião Nacional (RN), liderado por Marine Le Pen, anunciou nesta terça-feira (21/05) que não pretende mais atuar em conjunto no Parlamento Europeu com os deputados da legenda Alternativa para a Alemanha (AfD), marcando um novo capítulo no desgaste da relação entre as duas siglas europeias de ultradireita, que já se arrastava há meses.
A decisão pela cisão foi desencadeada por falas de um eurodeputado alemão que relativizou o histórico de uma antiga organização nazista, mas, na realidade, tem como pano de fundo as diferenças entre as estratégias eleitorais adotadas pelas duas legendas: a aposta na "normalização" promovida por Le Pen e a radicalização pública crescente da AfD.
Os dois partidos fazem parte da bancada parlamentar Identidade e Democracia (ID), que conta atualmente com 58 eurodeputados, entre eles membros de legendas de ultradireita de França, Alemanha, Aústria, Dinamarca e Itália, entre outros.
O rompimento ocorre a pouco menos de três semanas das eleições europeias, quando eleitores de toda a União Europeia (UE) vão escolher os mais de 700 deputados que compõem o Parlamento Europeu.
Falas de alemão sobre a SS desencadeiam rompimento
A relação entre o RN, que conta com 18 eurodeputados, e a AfD, com 9, atingiu um novo ponto baixo no último fim de semana, após o eurodeputado alemão Maximilian Krah afirmar em entrevista a um jornal italiano que nem todos os membros da organização nazista SS eram criminosos".
"Eu nunca diria que qualquer pessoa que usasse um uniforme da SS era automaticamente um criminoso. Entre os 900.000 da SS, havia também muitos camponeses. Certamente havia uma alta porcentagem de criminosos, mas não apenas isso", disse Krah, que concorre à reeleição e encabeça a lista de candidatos da AfD para o Parlamento Europeu.
A SS foi uma organização paramilitar do regime nazista (1933-1945) que teve papel central no aparato policial do 3° Reich e na execução do Holocausto, construindo e dirigindo campos de extermínio que massacraram milhões de europeus, especialmente judeus. Ao longo da sua história, a SS também incluiu formações militares mais tradicionais, agrupadas na Waffen-SS, aberta a membros não alemães e que também foi implicada em crimes de guerra, como um massacre na cidade francesa de Oradour-sur-Glane, em 1944, que resultou no assassinato de 643 pessoas. A cidade nunca foi reconstruída e suas ruínas foram deixadas como um memorial.
"Cordão sanitário urgente"
As falas do alemão Krah sobre a SS serviram de deixa para que o eurodeputado francês Jordan Bardella, que também é oficialmente presidente nacional do RN, anunciasse que não pretendia mais "se sentar" com os membros da AfD no Parlamento Europeu.
"Tivemos discussões francas, as lições não foram aprendidas: estamos estabelecendo as consequências", explicou o diretor de campanha de Bardella, Alexandre Loubet. "A AfD cruzou linhas que eu vejo como vermelhas", disse o próprio Bardella, que assim como Krah também encabeça a lista do seu partido para a eleição europeia.
Bardalla acrescentou que o RN pretende ainda construir "novas alianças" após a eleição e buscar fazer parte de um grupo mais amplo no Parlamento Europeu.
Já Marine Le Pen, na prática a líder do RN, afirmou que ser "urgente estabelecer um cordão sanitário". "A AfD vai de provocação em provocação", disse. "Agora não é mais hora de nos distanciarmos, é hora de romper claramente com esse movimento."
Deixa para cisão que já vinha sendo desenhada
O distanciamento dos franceses do RN em relação à AfD não surgiu apenas como consequência das falas do eurodeputado alemão Maximilian Krah. Há meses, o RN de Marine Le Pen vem enxergando os alemães como parceiros incômodos e desgastantes para a campanha. No momento, o RN aparece liderando as pesquisas para as eleições europeias na França, com 32% das intenções de voto, mais de 15 pontos à frente da lista partidária do atual presidente do país, Emmanuel Macron.
Já a AfD aparece com cerca de 15% das intenções na Alemanha, após perder sete pontos percentuais desde fevereiro, na esteira de uma série de escândalos partidários e pressão das autoridades policiais que investigam o partido por extremismo.
Em abril, o próprio eurodeputado Krah teve papel central em um deses escândalos, quando as autoridades alemãs passaram a investiga-lo por suspeita de recebimento de pagamentos ilegais da Rússia e da China. Para piorar, um dos assessores de Krah no Parlamento Europeu foi preso por suspeita de atuar como um agente chinês. Krah rejeita todas as acusações e prometeu cooperar com as autoridades de segurança. Nesta quarta-feira, a AfD anunciou que vai proibir Krah de participar de eventos de campanha, numa tentativa de tentar minimizar os estragos.
Mas ele não é o único candidato-problema. O número dois da lista de candidatos da AfD para o Parlamento Europeu, Petr Bystron, também é suspeito de receber pagamentos ilegais da Rússia. A suspeita é ainda mais séria no caso dele: a imprensa divulgou gravações de áudio nas quais Bystron supostamente reclamava que o dinheiro havia sido pago em cédulas de valor demasiadamente alto.
"Normalização" x radicalização
Mas esses episódios não são os únicos a provocar incômodo no RN de Marine Le Pen. Na última década, Le Pen apostou em um programa de "desdiabolização" ou "normalização" com o objetivo de expandir a base do seu partido, originalmente fundado por seu pai, Jean-Marie Le Pen, como Frente Nacional (FN). Na prática, isso significou uma suavização da linguagem mais radical que marcava a legenda nos tempos de Jean-Marie.
Marine Le Pen passou a apostar num discurso socioeconômico, deixando muitas vezes em segundo plano a velha agenda xenofóbica e anti-UE do seu grupo político, com o objetivo de expandir a base e fornecer uma forma de populismo menos controverso – ainda que na superfície – para o eleitorado em geral. A estratégia começou a se desenhar de maneira mais concreta ainda em 2015, quando ela expulsou seu próprio pai da legenda, após Jean-Marie mais uma vez provocar repúdio por minimizar o Holocausto.
Já a AfD seguiu o caminho exatamente oposto na última década. Fundada em 2013 como um partido eurocético light, na esteira da crise financeira da Grécia, a AfD inicialmente levantava a bandeira da rejeição de qualquer ajuda dos cofres alemães ao país mediterrâneo.
No entanto, rapidamente o partido passou por um processo de radicalização, servindo de guarda-chuva para diferentes grupos de ultradireita, como arquiconservadores, fundamentalistas cristãos e ultranacionalistas. Muitos membros também são acusados regularmente de nutrir simpatias pelo nazismo.
Nos últimos meses, não foram só escândalos envolvendo suspeitas de fraude e espionagem que atingiram a AfD. Na semana passada, a Justiça alemã validou uma decisão das autoridades de segurança do país de classificar a AfD nacional como "suspeita de extremismo de direita" – permitindo, assim, que agentes continuem monitorando de perto as atividades da sigla. Paralelamente, um dos principais líderes da AfD no leste alemão, Björn Höcke, foi condenado pelo crime de "uso público de um símbolo de uma antiga organização nazista". A corte definiu como pena o pagamento de uma multa de 13 mil euros.
Em janeiro, a legenda também provocou uma onda de repúdio na Alemanha após a imprensa revelar que alguns e seus membros participaram de um encontro em Potsdam com extremistas de direita no qual foram discutidos planos de deportação em massa de milhões de imigrantes e "cidadãos não assimilados" (leia-se: alemães naturalizados).
À época, Le Pen, de olho em manter a tática de "normalização" da sua legenda, também se distanciou dos planos de deportação discutidos pelos membros da AfD, afirmando que ela estava "em total desacordo com a proposta que aparentemente foi discutida" na reunião. Segundo a imprensa francesa, Le Pen também pediu que a AfD se distanciasse desse tipo de proposta. Em fevereiro, ela chegou a se reunir com líderes da legenda alemã, mas as divergências continuaram.
Autor: Jean-Philip Struck