Numa área industrial na periferia de Amsterdã, nesta terça-feira (27/02), dois carros pretos de luxo pararam em frente a um tribunal guardado por policiais fortemente armados. Os passageiros tinham os rostos quase totalmente cobertos por balaclavas, mas era possível ver apreensão nos olhos deles quando os automóveis passaram.
Um dos veículos entrou rapidamente numa pequena garagem na lateral do prédio, cujas portas logo se fecharam. O outro veículo seguiu adiante. Os passageiros estavam sendo transportados para "The Bunker", uma instalação de alta segurança perto do aeroporto de Schipol, no último dia de um julgamento sem precedentes na história da Holanda.
Ao fim dele, três homens, incluindo o notório chefe do crime organizado Ridouan Taghi, de 46 anos, foram condenados à prisão perpétua.
Os promotores do caso, conhecido como Marengo (nome da operação policial que resultou nas prisões), argumentaram que o trio, na condição de líderes de uma gangue criminosa, havia ordenado ou coordenado uma série de seis assassinatos, além de outras tentativas ou planejamentos de assassinatos entre 2015 e 2017.
Outros 14 homens foram condenados com penas de prisão que variam entre 21 meses e 29 anos, encerrando um julgamento de 142 dias, ao longo de quase seis anos, repleto de reviravoltas.
Taghi, que já foi o fugitivo mais procurado da Holanda, foi extraditado de Dubai em 2019 para ser julgado. A polícia afirma que ele fazia parte de um supercartel, que chegou a controlar um terço do comércio europeu de cocaína e que foi alvo de uma grande operação internacional, coordenada pela Europol, no fim de 2022.
Mais três assassinatos
Sobre o julgamento de Taghi pairavam outros três assassinatos que abalaram a sociedade holandesa: o do famoso repórter policial Peter R. De Vries, em 2021, o do advogado Derk Wiersum, em 2019, e o do irmão de Nabil B., a principal testemunha da promotoria no caso Marengo, em 2018.
De Vries foi vítima de um atentado numa rua do centro de Amsterdã e morreu em decorrência dos ferimentos causados pelos vários tiros. Ele estava assessorando Nabil B., um suspeito que passou a testemunha em 2018, condição que, ele diz, levou ao assassinato de seu irmão, logo em seguida.
Wiersum era o advogado de Nabil B., cujo extenso testemunho, em 41 depoimentos, totalizando centenas de páginas, de acordo com os promotores, serviu como prova fundamental, juntamente com um enorme conjunto de mensagens de texto trocadas entre membros de gangues, que foram descriptografadas.
Em troca da cooperação, a testemunha-chave teve sua sentença por participação nos assassinatos reduzida de 20 para 10 anos.
Holanda, um narcoestado?
Essas três mortes mudaram a maneira como a sociedade na Holanda via a violência das gangues, disse a famosa repórter policial Saskia Belleman, do jornal diário De Telegraaf, à DW. "Até Marengo, pensávamos que desde que eles se matem uns aos outros, isso não terá um impacto tão grande em nossa sociedade", explicou. "Mas aí eles mataram o irmão da testemunha-chave, mataram o advogado e mataram o assessor, o jornalista mais conhecido da Holanda", disse ela, referindo-se a De Vries.
O De Telegraaf havia feito reportagens sobre o que a mídia apelidou de Mocro Mafia (devido à origem marroquina dos seus membros, que alguns holandeses chamam de mocro) e seu suposto controle sobre grande parte do comércio de drogas na Holanda e na Europa. Em 2018, uma van foi direcionada contra o prédio do De Telegraaf em Amsterdã e pegou fogo. "Foi para nos calar, eu acho", disse Belleman. "Mas não funcionou."
Em 2022, as autoridades holandesas interceptaram cocaína com um valor de mercado de 3,5 bilhões de euros, principalmente no porto de Roterdã, o maior porto marítimo da Europa. As próprias autoridades reconhecem que a quantidade de cocaína que não é interceptada é muito superior a isso – o comércio só floresceu nos últimos anos.
"A tranquila e pacífica Holanda, onde o crime organizado quase não era um problema, hoje é comparada à Itália", comentou a criminologista Dina Siegel, da Universidade de Utrecht. "Especialistas italianos [em máfia] são convidados regularmente para assessorar os políticos holandeses."
Os três assassinatos que ocorreram quando o julgamento de Marengo já estava em andamento levantaram na Holanda o debate público sobre se o país havia se tornado um narcoestado. "A discussão continua e provavelmente continuará também após o julgamento", disse Siegel.
Advogado diz que julgamento justo era impossível
O veredito desta terça-feira não levou em consideração nenhum desses três assassinatos, mas eles estavam na mente de todos. A morte a tiros De Vries, em especial, que era um jornalista muito conhecido e admirado na Holanda, desencadeou uma grande comoção pública.
O advogado de um dos acusados disse à DW, sob condição de anonimato, que foi quase impossível defender seu cliente, dada a enorme repercussão do julgamento na mídia. O Estado holandês simplesmente não podia se dar ao luxo de não condenar os acusados, argumentou. Seu cliente vai recorrer da sentença dentro de duas semanas, acrescentou.
Por qualquer medida, o julgamento de Marengo foi caótico. Taghi foi inicialmente defendido por um primo, que é advogado, e depois pela conhecida advogada Inez Weski. Ambos foram retirados da equipe de defensores e presos durante o julgamento.
O juiz, que não pode ser identificado por questões de segurança, negou as alegações de que o julgamento teria sido imparcial. "O julgamento de todos os suspeitos foi um julgamento justo", insistiu, apontando para as provas contundentes fornecidas pelos promotores.
Tráfico vai continuar
O julgamento de Marengo marcou a sociedade holandesa, especialmente os advogados e jornalistas. "Tenho dois colegas que estão sendo vigiados 24 horas por dia", disse Belleman, repórter do De Telegraaf. Para ela, o Estado holandês aprendeu com seus erros e agora está oferecendo melhor proteção às pessoas em risco.
O professor de direito penal Sven Brinkhoff, da Universidade de Amsterdã, disse que o julgamento também afetou aqueles que trabalham no sistema jurídico. "A mudança mais importante é que ele trouxe medo a esse sistema."
Tanto Brinkhoff como Siegel disseram que houve sucessos recentes na aplicação da lei de combate ao tráfico de drogas. Mas nenhum deles tem a impressão de que a condenação de Taghi e seus comparsas seja o fim da história. "O tráfico de cocaína vai continuar, e essa é uma verdade incômoda", afirmou Brinkoff.
Para Siegel, o veredicto certamente é um alívio para os parentes de muitas vítimas. "Também significa um grande golpe para essa organização, pois Ridouan Taghi é um chefe do crime carismático e influente." "Mas se você perguntar se o crime organizado vai desaparecer, a resposta é não", afirmou.
Autor: Ella Joyner (em Amsterdã)