No dia 4 de setembro de 1987, Ailton Krenak fez um contundente discurso na Assembleia Constituinte. Enquanto ele clamava para que os políticos ali presentes não compactuassem ou não silenciasse frente a mais uma agressão que o Brasil fazia com os povos indígenas. Enquanto elencava fatores fundamentais da vida e da cosmovisão indígena, Krenak pintava seu rosto com uma tinta preta, feita de jenipapo. Aquele rosto indígena pintado de preto era um símbolo do luto frente ao retrocesso na luta pelos direitos indígenas, mesmo num dos momentos mais esperançosos da história brasileira.
Há toda uma experiência democrática que liga aquele discurso de 1987 com este 19 de abril de 2024. Algumas coisas mudaram, como a ampliação da questão indígena no debate público, ampliação na qual Ailton Krenak se consolidou como um nome de destaque, haja vista sua recente posse como imortal da Academia Brasileira de Letras no último 5 de abril. Também aprendemos que não devemos mais falar índio, termo equivocado, criado por espanhóis e portugueses no final do século 15 para designar as populações que viviam no continente que eles insistiam ter descoberto. Uma mudança que pode parecer sutil, mas que anuncia a diversidade e a ancestralidade daqueles que estavam aqui antes de 1500, e que seguem estando.
Índio não existe. O que temos são povos indígenas, os povos originários de um continente batizado com o nome de um colonizador.
E decidir falar no plural é o mínimo que deve ser feito para iniciar um longo processo de reparação histórica de uma sociedade que por muito tempo decidiu fazer ouvidos moucos sobre aquele que foi um dos maiores (se não o maior) genocídio já cometido na face da terra.
Ser plural, é também ser humano.
Dia dos Povos Indígenas
E em 2022, o Dia do Índio virou o Dia dos Povos Indígenas, atendendo assim uma demanda dos próprios indígenas.
Mas continua sendo quase vergonhoso o fato de que, fora as tragédias humanitárias ou feitos quase inimagináveis (como a eleição e posse de um autor indígena numa das mais prestigiosas instituições brasileiras), o dia 19 de abril se tornou um dos poucos momentos em que as questões relativas às populações indígenas ganham espaço na arena pública, sobretudo nas grandes mídias.
Antes e depois disso, o que geralmente temos é um grande silêncio.
Em alguma medida, a própria existência do Dia do Índio se tornou uma maneira de calar sobre a violência imposta às populações indígenas e as lutas travadas por elas. Em 1943, em pleno Estado Novo, Getúlio Vargas assinou o decreto-lei nº 5.540 sob inspiração do Congresso Indigenista Americano daquele mesmo ano. Mas a assinatura aconteceu em meio a resistências do governo brasileiro, pois a data, 19 de abril, era uma referência direta à invasão que lideranças indígenas haviam feito naquele Congresso, sediado no México. Parecia, então, que o problema indígena estava resolvido, e o Brasil poderia caminhar rumo ao progresso.
Progresso anti-indígena
Acontece que o progresso que era e continua sendo implementado pelas elites econômicas e por boa parte dos políticos brasileiros é essencialmente anti-indígena. Nos nossos 524 anos de história, temos um país que decidiu não fazer reforma agrária, mantendo a concentração de terras como um elemento que organiza a sociedade e explica a profunda desigualdade social e econômica brasileira. E a cara de pau é tamanha que, na tentativa de modernizar uma das heranças mais longevas e perversas de nossa história, latifúndio agora é "pop”, mas continua nas mãos de meia dúzia de famílias – nenhuma indígena.
E mesmo num país que, oficialmente, reconhece e celebra a diversidade dos povos indígenas, a relação que grande parte do poder público e, sobretudo, dos grupos econômicos estabelece com os povos originários ainda parte da ideia de que eles são índios.
Índios são aqueles que podem morrer de fome e desnutrição. Índios são os que devem viver de tanga na floresta. Índios são mencionados duas ou três vezes na formação dos cidadãos e cidadãs brasileiros que ficam 11 anos na escola. Índios tem suas lideranças políticas sistematicamente assassinadas nas disputas por terra, sem que isso gere revolta de médio alcance ou incômodos mais profundos dentro do poder público. Índios não estão tendo suas terras demarcadas da forma devida, para que essa mesma terra vire pasto ou plantação de soja pra gado.
Índios são aqueles com os quais não temos nada a perder ou a aprender; e esse talvez seja nosso maior erro.
À despeito de uma luta que começou em 22 de abril de 1500, o Brasil segue celebrando o dia do índio, com a mesma coerência com a qual estereotipa, humilha e mata os povos indígenas... e no final das contas, nenhum dia e dia de índio.
--
Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.
Autor: Ynaê Lopes dos Santos