Conhecida pelo histórico de desrespeito aos direitos das mulheres, a Arábia Saudita foi escolhida na semana passada para presidir o principal fórum de igualdade de gênero das Nações Unidas, a Comissão da ONU sobre o Estatuto da Mulher. Mesmo antes da escolha ser oficializada, organizações de direitos humanos já alertavam para a problemática decisão.
"Outros países devem se opor à candidatura da Arábia Saudita, que tem um histórico de desrespeito aos direitos das mulheres", escreveu a ONG de direitos humanos Human Rights Watch (HRW) uma semana antes.
Depois que a decisão foi oficialmente comunicada em 28 de março, as críticas se intensificaram. "Quem quer que esteja na presidência, no caso a Arábia Saudita, está em uma posição-chave para influenciar o planejamento, as decisões, o balanço e o olhar para o futuro, em um ano crítico para a comissão", destacou Sherine Tadros, chefe da Anistia Internacional em Nova York ao jornal inglês The Guardian. "A Arábia Saudita está no comando, mas há um abismo entre o país e os direitos das mulheres, o que o torna muito distante da missão da comissão", completou.
Como essa escolha foi possível?
A Comissão sobre o Estatuto da Mulher (CSW, na sigla em inglês), é composta por 45 Estados-membros da ONU. Para garantir uma representação justa, os membros são escolhidos de acordo com a geografia: 13 da África, 11 da Ásia, nove da América Latina e Caribe, oito da Europa Ocidental e outros Estados e quatro da Europa Oriental. Cada Estado-membro tem mandato de quatro anos. A Arábia Saudita, parte do bloco asiático, é membro até 2027.
Todos os anos, a CSW realiza uma conferência anual, com a participação de milhares de pessoas, durante a qual o progresso da igualdade de direitos para as mulheres é avaliado e uma declaração final é negociada e publicada.
A CSW também tem um gabinete"de liderança, composto por um membro de cada bloco. A presidência é rotativa, e cada bloco se reveza a cada dois anos.
Atualmente, é a vez da Ásia, com as Filipinas na presidência da CSW. No entanto, como o país fará parte da comissão somente até 2024, Manila planejou compartilhar o cargo, permitindo que outro país do grupo asiático assumisse o último ano de liderança - e isso acabou recaindo à Arábia Saudita.
Por que ninguém se opôs?
Geralmente, os participantes do grupo geográfico confirmam o cargo por unanimidade, sem qualquer tipo de votação.
Mas outros membros da CSW, como Holanda, Portugal ou Suíça, poderiam ter protestado contra a decisão, segundo a ONG Human Rights Watch, que fez pressão contra a eleição da Arábia Saudita.
Um exemplo foi em 2022, quando os governos ocidentais expulsaram o Irã da CSW durante a repressão do governo iraniano aos protestos desencadeados pela morte da jovem Jina Mahsa Amini, detida pela polícia iraniana por supostamente não estar usando o véu islâmico.
"Diplomatas do grupo regional ocidental da ONU reconheceram a problemática da candidatura da Arábia Saudita", declarou Louis Charbonneau, diretor da ONU na HRW, pouco antes da decisão ser tomada. "Mas eles não planejaram se opor ou pedir uma votação registrada, pois não queriam criar um precedente".
Quanto poder o cargo traz?
O embaixador da Arábia Saudita na ONU, Abdulaziz bin Mohamed al-Wasel, assume a CSW até 2025, tornando-se o primeiro diplomata saudita na função desde que a comissão foi criada, em 1946.
"O que se espera é que o recém-eleito presidente da CSW continue o trabalho de seus antecessores", disse um porta-voz da ONU Mulheres à DW. Isso inclui o avanço das metas da Declaração de Pequim, uma resolução adotada por 189 países em setembro de 1995 e frequentemente descrita como um marco na igualdade de gênero.
Os críticos da Arábia Saudita temem que o país possa influenciar negativamente a posição da ONU sobre a igualdade de gênero, por exemplo, na conferência da CSW do próximo ano.
O evento deste ano já "expôs as profundas divisões culturais e religiosas entre as nações conservadoras e progressistas sobre os direitos sexuais e reprodutivos e as proteções de pessoas LGBTQ", escreveu no mês passado o site especializado Devex.
Este ano, a Arábia Saudita trabalhou em conjunto com outros países - incluindo Belarus, Nigéria, Turquia, Indonésia e Rússia, bem como a Santa Sé - para promover valores familiares conservadores e garantir que a linguagem sobre, por exemplo, direitos LGBTQ ou prevenções contra violência sexual e de gênero fossem diluída ou deixadas de fora da declaração final da CSW, destacam observadores.
"Dar uma plataforma, dar acesso e dar voz e poder a pessoas que estão tentando fazer retroceder a justiça de gênero e as questões de direitos das mulheres é uma armadilha e enfraquece a pressão para um debate sobre as principais questões", destacou ao Devex Amina Hersi, diretora de direitos de gênero da ONG Oxfam International.
É um progresso ou apenas propaganda?
Em contrapartida às críticas, o governo da Arábia Saudita costuma destacar constantemente o recente progresso feito em relação aos direitos das mulheres.
"A presidência do Reino da Arábia Saudita está alinhada com as conquistas qualitativas alcançadas pelo país nesse campo, graças à atenção especial e ao cuidado que a liderança do Reino da Arábia Saudita dedica ao empoderamento e aos direitos das mulheres", disse a agência estatal Saudi Press.
O comunicado também acrescenta que o ambicioso plano "Visão 2030" do país apoia uma maior participação feminina na economia saudita.
Pode haver algum potencial para mudanças positivas, admite Lina al-Hathloul, diretora da organização de direitos humanos ALQST, com sede em Londres. "Acreditamos que o engajamento e a colaboração internacionais podem levar a mudanças positivas, e que a disposição da Arábia Saudita em se engajar pode ser incentivada", disse à DW.
Mas al-Hathloul acrescenta que as recentes reformas da Arábia Saudita significam muito pouco, pois as mulheres do país ainda podem ser presas ou detidas por não se comportarem ou se vestirem da maneira prescrita, por não obedecerem aos seus "guardiões" homens ou por expressarem pacificamente opiniões políticas.
"Concretamente, o que temos visto nos últimos anos é que, apesar da narrativa das reformas, o discurso sobre os direitos das mulheres continua sendo um ato de relações públicas", argumenta al-Hathloul, que acredita que essas "reformas" sejam apenas parte dos objetivos econômicos do Estado para atrair mais investidores e turistas ocidentais.
Autor: Cathrin Schaer